Com as reformas trabalhista e previdenciária em curso no Congresso Nacional, a aprovação da terceirização nas atividades-fim, o Brasil 247 entrevistou João Baptista Cilli Filho, 44 anos, juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Araraquara, para ampliar o debate sobre os temas que poderão alterar significativamente as relações do trabalho no Brasil.
Cilli é bacharel e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com licenciatura pela UNESP e especialização em Economia do Trabalho pela UNICAMP (Cesit).
Sobre a terceirização, o magistrado diz que “no Brasil, a ‘terceirização’ ganha os contornos próprios da exploração periférica, apresentando-se, também, como meio de fraudar garantias trabalhistas mínimas, livrar-se de conquistas de categorias mais organizadas ou mesmo uma tentativa de se livrar ileso da ofensa aos direitos trabalhistas”.
Também aponta para maior precarização das condições de trabalho e, consequentemente da vida, a partir dos efeitos da “quarteirização” e do “trabalho intermitente”.
Confira:
247 – Em meio aos debates das reformas trabalhista e da previdência, foi desengavetado e aprovado no Congresso o projeto de terceirização. Como projeta as novas relações do trabalho agora com a terceirização e a permissão legal das empresas subcontratarem os trabalhadores?
João Cilli – Primeiro, é preciso tratar, em perspectiva, o que se denomina de “terceirização”. Impingir a terceiro, aparentemente livre, os riscos do dispêndio da força de trabalho, para lhe arrancar, da forma mais irresponsável possível, a maior parcela possível do resultado material gerado está na célula vital do modo capitalista de produção, em curso, portanto, por toda história do trabalho assalariado.
É lógico que esta tendência de exploração máxima do trabalhador gerou e gera tensões sociais graves, de forma que o próprio sistema procura dar-lhe um tratamento civilizatório, mesmo que ideal ou em aparência, para não comprometer o curso da própria exploração capitalista.
O tratamento civilizatório, ao menos aparente, para a relação entre Capital e Trabalho, tem suas variações históricas, segundo as afetações pela própria concorrência capitalista (entre capitais e no mundo do trabalho), no espaço e no tempo, de modo que o Capital, em seus centros nacionais desenvolvidos, como foi o caso europeu do pós-guerra, fez concessões civilizatórias mais agudas, chegando-se a estabelecer um colchão social à classe trabalhadora local mais perene, dentro do que se chegou a chamar de Estado de Bem Estar Social, mas apoiadas, também, em uma exploração periférica, leia-se, nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, ainda em bases indignas.
O “terceiro”, na exploração capitalista, ganha o tratamento eufemístico contemporâneo de “colaborador”, expressão que leva, para a linguagem, a alienação do trabalho, visando apartar a figura do trabalhador (que, na essência, é quem produz a riqueza) do negócio, que, na aparência, apresenta-se como produtor da riqueza, o investidor, aquele que “dá” empregos”, “gera” renda, “paga” os impostos.
Por outro ângulo, mas não desconexo do primeiro acima tratado, o termo “terceirização” é tomado como técnica produtiva com a finalidade de, através da descentralização dos processos de produção, buscar maior especialização e, consequentemente, aumento da produtividade. Não obstante, o aumento da produtividade pela especialização, através da terceirização dos processos, possa gerar, de fato, aumento da produtividade, o fato é que, na prática, uma visão histórica mais atenta desnuda muitas outras finalidades da terceirização, como a de possibilidade levar, em um alto nível de globalização econômica, parte dos processos de produção a localidades periféricas, onde há a possibilidade de maior exploração do trabalho, em comparação aos centros nacionais do capital. Nessa esteira, é que se pode verificar desde a produção de peças em solos chineses até o atendimento de telemarketing indiano em favor de indústrias e empresas em solos norte americanos e europeus.
No Brasil, a “terceirização” ganha os contornos próprios da exploração periférica, apresentando-se, também, como meio de fraudar garantias trabalhistas mínimas, livrar-se de conquistas de categorias mais organizadas ou mesmo uma tentativa de se livrar ileso da ofensa aos direitos trabalhistas.
Em um passe de mágica, utilizando-se de uma personificação, aparentemente apartada de seu negócio, tenta-se afastar a responsabilidade pelas obrigações trabalhistas, as conquistas negociais coletivas e a própria segurança ambiental do trabalho.
Os organizadores da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), muito sabiamente, atentos a um fenômeno que, já na década de 1940, não era novo, deram tratamento muito inteligente à relação empregatícia, de modo a permitir ao intérprete (privado, administrativo ou judicial) verificar a clara personificação dos exploradores de mão de obra a se vincularem as obrigações trabalhistas. Em seu artigo 2º, qualificou o empregador como a EMPRESA que ASSUME O RISCO DO NEGÓCIO e o empregado como aquele que, de forma pessoal, onerosa e não eventual, dispenda a sua força de trabalho de forma dependente a esta empresa.
Esclareça-se que EMPRESA não se apresenta, em primeira vista, como uma pessoa qualquer, ela é um conjunto de bens materiais e imateriais vinculados a uma produção. A personificação da EMPRESA faz-se em um segundo momento, com a atenção a quem são as pessoas, jurídicas ou físicas, que se valem deste conjunto produtivo, de bens ou serviços, para finalidades lucrativas ou não.
A CLT vai mais além, no §2º do artigo 2º, estende a responsabilidade pelas obrigações trabalhistas a outras EMPRESAS, que mesmo não ligadas, diretamente, a uma determinada exploração laboral, de forma coordenada ou subordinada, possuem o potencial de dela se valerem, compreendidas assim no mesmo GRUPO EMPRESARIAL, de forma perene ou nos limites temporais de certos negócios.
Por fim, a CLT tem o cuidado, ainda, de reforçar a ideia de responsabilidade solidária dos capitais que se valem da exploração do trabalho pela figura da subempreitada, em seu artigo 455.
Percebe-se, assim, que a própria CLT prevê a possibilidade de múltipla personificação da exploração do trabalho, mas a vincula à responsabilidade direta pelas obrigações trabalhistas, seja pelo reconhecimento do vínculo empregatício direto além da personificação formalizada na Carteira de Trabalho, com o reconhecimento da extensão empresarial (artigo 2º da CLT), seja pela formação de GRUPO entre empresas (artigo 2º, §2º), seja pela condição de empreitada descentralizada (artigo 455 da CLT).
É por isso, que, mesmo na terceirização do que se veio a determinar como atividade-meio, a melhor apreensão da disciplina trabalhista deu-se pelos entendimentos enunciados pela 1ª JORNADA DE DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO E DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO – TST/ANAMATRA (Enunciados 10, 11. 16 e 44), sempre, com a responsabilização solidária do tomador e com a garantia da isonomia entre os trabalhadores, do que pelo entendimento sumulado pelo C. TST (Súmulas 256, 331 e 363) que acaba contingenciando a proteção, historicamente, disciplinada, com a previsão de responsabilização subsidiária para alguns casos e limitação de direitos, como no caso do tomador da administração pública.
Enfim, tocando, diretamente, no ponto da última alteração da disciplina normativa da terceirização trazida pela Lei 13.429, de 31 de março de 2017, que trouxe mudanças na Lei 6.019/1974 (Lei do Trabalho Temporário), é preciso, para o tratamento mais claro e objetivo das “reformas” ou “desmanches” da proteção legal trabalhista que ainda estão por vir, deixar claros alguns pontos.
Não é correto afirmar, destaca-se inicialmente, que a alteração legal criou a possibilidade da terceirização ou, como entendo melhor dizer, a possibilidade de múltipla personificação da exploração do trabalho na atividade-fim. Ela já existia, como já se verificou pelos artigos 2º, caput e §2º, e 455 da CLT ou mesmo da alterada Lei 6.019/1974, que trata justamente da possibilidade de terceirização na atividade-fim, por certo tempo, nas hipóteses de necessidade de substituição transitória de pessoal ou para atender a excepcional demanda complementar de serviços. Frise-se: a lei sempre tratou da terceirização de atividade-fim, porém com as garantias da isonomia de direitos e com a responsabilização do tomador no caso de insolvência da pessoa intermediária, a empresa de trabalho temporário.
Não obstante, a alteração legal limitou a responsabilização do tomador à subsidiariedade, com todas as controvérsias que cercam os efeitos dessa responsabilização, reveladas nos tribunais; e mais, uniu, de forma mais dramática, a terceirização à maior temporariedade da relação de emprego, abrindo, assim, uma grande porta para a precarização das relações de trabalho, já que empregadores, urbanos ou rurais, caso se entenda pela extensão da disciplina aos trabalhadores rurais, terão agora a opção pela concentração da exploração laboral em até 9 meses, sem a vinculação formal direta e sem as mesmas obrigações de um contrato por prazo indeterminado.
A lei recente, ainda, dentro da norma que trata de trabalho temporário, estendeu a possibilidade de terceirização de serviços “determinados” e “específicos”, também, de forma não temporária, a empresa que dirija e remunere os trabalhadores ou mesmo se valha de uma outra empresa para a prestação, o que significa “quarteirização”.
A alteração tem o potencial de trazer os mesmos entraves jurisprudenciais encontrados pela Lei 8.949/1994 que acrescentou o parágrafo único no artigo 442 da CLT com a previsão de não formação de vínculo empregatício entre os associados da cooperativa e a tomadora dos serviços da cooperativa contratada, um modo de terceirização. Isso porque o artigo 9º da CLT garante a proteção do empregado em face de artimanhas com o fim de dissimular uma real relação de emprego, de modo que se se verificar que o tomador é o real dirigente do trabalho, deve-se reconhecer o vínculo, diretamente, com o tomador, situação que se apresenta como, logicamente, ordinária na relação entre tomador e trabalhador que exerça função ligada à atividade-fim da empresa, em razão da dependência estrutural do trabalho à atividade empresarial.
No Brasil, de todo o modo, concretamente, a terceirização tem significado trabalho menos remunerado, mais inseguro, com representação sindical controversa e mais sujeito a longos processos judiciais para a busca do recebimento dos mínimos direitos trabalhistas, como verbas rescisórias. Ademais, não são incomuns os casos em que os empregados terceirizados não conseguem ter férias em descanso, pela sucessão de sujeição a contratos da tomadora com empresas terceirizadas diferentes.
247 – Além do trabalho terceirizado, setores empresariais agora investem na questão do trabalho intermitente, questão ainda vaga no imaginário. Se aprovado, como funcionaria? E as consequências?
João Cilli – O artigo 4º da CLT determina qual é uma das obrigações centrais do empregado no contrato de trabalho, “estar à disposição” do empregador, e o artigo 2º CLT impõe ao empregador os riscos da exploração desta disposição; ou seja, o empregador deve remunerar o empregado que fique à disposição durante a jornada com os seus limites legais, independentemente do tempo à disposição ser aproveitado em atividade produtiva ou não, em realização de trabalho ou não.
O “trabalho intermitente” nada mais é que o desvirtuamento deste clássico contorno obrigacional trabalhista, permitindo que o empregador, em última instância, transfira ao empregado os riscos de seu negócio, limitando-se a remunerar somente o tempo em que possa explorar, concretamente, a atividade do empregado, mesmo que amarre o cotidiano do trabalhador à espera de uma demanda exploratória.
Na prática, o empregador poderia decidir por explorar 10 horas de trabalho de um empregado em uma semana, 3 horas na outra, 15 horas na seguinte e nenhuma hora na 4ª semana e sua obrigação remuneratória limitar-se-ia ao pagamento das horas trabalhadas e não mais a um tempo em que o empregado tivesse que ficar à sua disposição, como é o caso da jornada ordinária atual.
Trata-se de um claro e dramático retrocesso social que não escaparia da gravação de inconstitucionalidade se submetido a uma interpretação atenta do caput do artigo 7º da Constituição Federal, que encampa o princípio da proteção evolutiva do trabalhador, ou seja, constitucionalmente, o tratamento legal das relações trabalhistas, a partir das garantias mínimas trazidas pela Constituição Federal de 1988, só poderia ter o efeito da melhoria das condições sociais do trabalhador, o que não ocorre, sob nenhum ponto de vista, com a permissão de um “trabalho intermitente”, observando-se que a jurisprudência, já avançou para o direito genérico à remuneração mesmo além do tempo à disposição em jornada ordinária e extraordinária, quando se submete o empregado a regime de sobreaviso, quando o empregado, mesmo após cumprido a jornada, tem o gozo de sua vida genérica limitado, pela obrigação de ficar sujeito a chamados do empregador para trabalho fora da jornada.
247 – O argumento do governo e empresarial para a terceirização foi alicerçado na premissa de que a flexibilização da CLT será capaz de gerar novos empregos. Qual o lastro essa posição estabelece com a realidade?
João Cilli – Não há nenhuma vinculação lógica, científica ou empírica do processo de terceirização à diminuição do desemprego e pode ocorrer mesmo o inverso: o aumento do desemprego em certas épocas do ano em razão da união da terceirização à temporariedade, além de transferências de parcelas dos processos produtivos para regiões ou países com menor resistência coletiva à exploração máxima.
Acrescente-se que o importante, à visão solidificada pela OIT, da qual o Brasil é signatário, é a geração de trabalho decente, com amplos direitos, segurança e representação sindical efetiva, e não qualquer trabalho precarizado.
247 – Quais os maiores absurdos que se deparou em relação à desrespeito aos direitos trabalhistas e, consequentemente, do cidadão?
João Cilli – Um caso recorrente nos processos trabalhistas é, justamente, a lamentável situação de trabalhadores terceirizados com o rompimento abrupto dos contratos do trabalho com sumiço da empresa empregadora, sem o pagamento das verbas rescisórias.
247 – Diante do exposto, defende a CLT como instrumento para assegurar direitos dos trabalhadores? Modernizar, sob o atual contexto de retração econômica, não representa precarizar?
João Cilli – É preciso entender, com toda a experiência histórica já apreendida, que se se quer estabelecer um patamar mínimo civilizatório, expressão bem utilizada pelo professor, escritor e ministro Maurício Godinho Delgado, a fim de que não se submeta toda a sociedade à barbárie social pela tendência exploratória e predadora do modo capitalista de produção, é preciso um sistema de proteção social aos trabalhadores, com as garantias mínimas que até então têm sido normatizadas pela Constituição Federal e pelas legislações ordinárias.
Mais ainda, se se quer dar um sentido ao desenvolvimento que o modo capitalista de produção possa oferecer, então, é preciso que a proteção dos trabalhadores até se amplie, com, por exemplo, redução dos limites das jornadas ordinárias e até mesmo o acesso dos trabalhadores ao uso dos meios de produção, inclusive, com apropriação pública.
O certo é que tenho sérias dúvidas fundamentais sobre a possibilidade de o modo capitalista de produção, objetivamente, possa oferecer campo a certas utopias, mais positivistas do que concretas. (247)
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