A fome volta ao sertão da Paraíba e país pode voltar à miserabilidade

Por Ricardo Banana
A+A-
Reset

Quando a parte de asfalto acaba, é preciso seguir mais cem metros em uma rua esburacada para chegar à casa simples do pescador Francielio Monteiro, o Hélio de Socorro, de 43 anos, no bairro Janduhy Carneiro, mais conhecido como “bairro das Populares”, na cidade de Pombal, sertão da Paraíba. Uma casa de cinco cômodos, poucos móveis e com a pintura já desgastada abriga o pai e dois dos seus quatro filhos. Do lado esquerdo da porta de entrada, uma imagem de gesso de Jesus crucificado. Em pé, ao lado da imagem, Hélio conta que acaba de chegar do posto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) da cidade vizinha, onde recebeu a notícia de que a sua aposentadoria foi cancelada. Este era o segundo corte em dois meses. Ele já tinha perdido o benefício do Bolsa Família dos filhos, ficando basicamente sem renda. Com a pesca, só consegue arrecadar de R$ 10 a R$ 30 por semana.

A situação de Hélio não é muito diferente de vizinhos do seu bairro, ou de outros bairros pobres de Pombal, tanto na zona urbana como na rural. Mas é uma situação nova, com cara de passado.

A cidade, que fica a 370 km da capital João Pessoa e tem aproximadamente 30 mil habitantes, já foi escolhida pela ONU para representar os municípios brasileiros na 70a Assembleia Geral, que ocorreu em Nova York em setembro de 2015, como exemplo de desenvolvimento social e superação da pobreza. Na época, a então prefeita Pollyana Dutra (PSB) representou a cidade como um exemplo global de boas práticas. Representantes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) escolheram Pombal por ser o município brasileiro que chegou mais próximo de atingir os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, entre eles reduzir a pobreza e atingir o ensino básico universal.

Um dos principais motores daqueles anos de glória foi a capacitação promovida para os beneficiários do Bolsa Família. Muitos começaram a investir no próprio negócio, mais que dobrando o número de microempreendedores, de 283 em 2013 para 736 em 2014, segundo o IGBE. De acordo com Pollyana Dutra, o foco principal do programa era capacitar as mulheres.

O município se destacou também na educação. Em 2015, os alunos dos anos iniciais da rede pública da cidade tiveram nota média de 5.7 no Ideb, o que colocou Pombal como sexta melhor cidade entre 223 municípios paraibanos.

Hoje, a realidade é outra. Ao longo de quatro meses, a reportagem da Pública conversou com moradores da cidade e ouviu histórias repetidas: auxílios sociais cancelados sem justificativa clara, aposentadoria rural cada vez mais difícil de obter, e a comida que começa a faltar na mesa.

O futuro ficou no passado
Hélio encosta na porta, olha para a rua sem asfalto e conta que chegou a acreditar num futuro melhor. “Eu vivo doente, mas vivo de pesca, que o dinheiro não dá. A casa não é minha, é de um irmão meu que me deu para morar, mas eu pago água, luz, gás. Estou comendo porque a minha mãe manda as coisas. Eu pensei que nós íamos ter um futuro melhor. Meu futuro é caçar um canto para morrer e pronto”, diz. Naquele dia ele não tinha mais do que arroz e dois pedaços de mortadela para comer e dar aos filhos.

Em setembro do ano passado, sua aposentadoria por invalidez foi suspensa. Em novembro, a perícia, realizada no próprio INSS, recusou o apoio financeiro. Lá pela mesma época, veio o corte do Bolsa Família – este foi cortado justamente por causa da aposentadoria que ele recebia, pois constava no sistema que não havia necessidade para os dois apoios.

Ao explicar sua situação à reportagem, Hélio fica nervoso. Cai, desacordado, no chão. A cena é corriqueira na casa do pescador, e depois de ser socorrido pela filha e o sobrinho ele se recusa a ir ao hospital: “Não adianta nada”.

Por causa de um acidente na infância, Hélio tem fraturas na mão e na perna direita, e foi diagnosticado com epilepsia pós-traumática. É por isso, conta, que jamais conseguiu um emprego formal. Sempre viveu da pesca.

Apenas em 2012, conseguiu se aposentar por invalidez, passando a receber um salário mínimo. Complementava a renda com o Bolsa Família em apoio à educação dos filhos: R$ 466. Separado da ex-mulher, alcoólatra, ele cria os quatro com pouca ajuda. A mais velha, de 16 anos, foi embora com o namorado para Goiás, em busca de condições melhores. O menino de 14 anos está vivendo com a família da mãe. Ele cuida dos dois mais novos, uma menina de 13 e um menino de 10. Desiludidos, todos abandonaram a escola depois do corte no Bolsa Família. Este ano, só os dois mais novos voltaram. “Eu não queria que eles parassem. Conversei com os professores, que me disseram que eles estavam muito agressivos, não faziam a tarefa”, diz o pai.

“Só Deus e Nossa Senhora Aparecida podem fazer algo por mim. Eu vou recorrer na Justiça [para conseguir a aposentadoria] pelas crianças, para não vê-las passando fome. Eu só tenho pena delas, de mim não porque eu já estou cheio de doenças”, suspira. “Eu nem posso ficar só. Quando vou pescar, é com alguém porque eu tenho esse problema na minha cabeça.” Foi só no ano passado que conseguiu fazer uma tomografia, paga por um vereador da cidade. “O médico me passou quatro tipos diferentes de remédios, mas eu já até perdi as receitas. Isso foi ano passado, quando cortaram tudo. Eu nunca tive dinheiro para comprar nenhum.”

Política de governo iniciada por Michel Temer

O benefício de Hélio foi só um de um total de 552 mil que foram cancelados nos últimos dois anos em todo o Brasil, após o “pente-fino” do INSS. O processo de revisão das aposentadorias começou a ser realizado em agosto de 2016, mesmo mês do impeachment de Dilma Rousseff, quando o então presidente Michel Temer encaminhou ao Congresso a Medida Provisória (MP) 739, que acabou perdendo a validade por não ter sido votada. Em janeiro de 2017, ele publicou a MP 767, com texto praticamente idêntico à anterior.

Essa medida restringiu o acesso aos benefícios previdenciários, em especial os benefícios por incapacidade: o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez. Com os ajustes, o prazo mínimo de contribuição para ter direito ao auxílio-doença, aposentadoria por invalidez ou salário-maternidade aumentou. O segurado deveria ter pelo menos seis meses de contribuições para receber o auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, e cinco meses para ter direito ao salário-maternidade. A medida estabeleceu também um bônus para os médicos peritos do INSS que fizessem perícias extras nos casos de benefícios por incapacidade mantidos sem perícia há mais de dois anos. O benefício valia R$ 60, e os “incentivos” seguem em vigor por dois anos depois da Medida.

Cerca de 1,1 milhão de perícias foram feitas pelo órgão. No fim da operação pente-fino, foram cancelados 80% dos benefícios de auxílio-doença revisados e 30% das aposentadorias por invalidez, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Em novembro do ano passado, o MDS anunciou que a revisão dos benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez tinha gerado uma “economia” de R$ 13,8 bilhões.

Essa não é a primeira vez que essas revisões acontecem, segundo o gerente executivo do INSS em João Pessoa, Rogério Oliveira. O diferencial dessa vez foi a criação de um programa específico através da medida provisória, que depois se transformou em lei. “Essa lei agilizou a análise dos benefícios para revisar os processos das pessoas que estariam recebendo há mais de dois anos. A diferença é que agora se tornou mais rigoroso”, salientou.

Segundo o cientista político e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) José Henrique Artigas, embora várias cidades paraibanas tenham quase atingido Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em meados desta década, a crise econômica trouxe desemprego e consequentemente a volta da fome – em especial para aqueles municípios que dependem do governo federal.

Com Pombal foi assim. De acordo com o IBGE, o número de pessoas ocupadas na cidade caiu 21% entre 2015 e 2016, de 4.054 para 3.200 pessoas. Já o número de pessoal ocupado assalariado era de 3.403 e caiu para 2.566, uma redução de 24%. O salário médio despencou de R$ 1.900 para R$ 1.700.

A recessão, somada aos cortes dos programas, faz com que o Brasil esteja voltando ao Mapa da Fome cinco anos depois de sair dele pela primeira vez, em 2014. É o que diz o Relatório Luz, elaborado por 20 entidades da sociedade civil e publicado em 2018. Em novembro a organização internacional Oxfam publicou um relatório demonstrando que, pela primeira vez nos últimos 15 anos, a redução da desigualdade de renda parou no Brasil. O relatório aponta que, em 2016, o espaço dedicado aos gastos sociais no orçamento federal retrocedeu 17 anos.

“Pelo menos 85% dos municípios brasileiros não possuem praticamente arrecadação tributária direta. Eles vivem de repasse do governo federal, principalmente o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], o Bolsa Família, o SUS e o Fundo de Participação dos Municípios. E os fundos de repasse vêm caindo nos últimos dois, três anos. A tendência é que as arrecadações orçamentárias caiam de novo em 2019”, esclarece Artigas.

Apesar de os números divulgados pelo MDS indicarem um ligeiro aumento do programa na Paraíba, na cidade de Pombal houve cortes. Enquanto o estado passou de 514.017 famílias beneficiadas em 2017 para 524.408 em 2018, Pombal sofreu um corte no auxílio a 200 famílias no mesmo período. Em 2018, 4.512 famílias receberam em média R$ 199 mensais. O repasse total foi de R$ 10,8 milhões.

Um dia, o Bolsa Família não veio

Em uma cidade pequena como Pombal, o corte de 200 famílias causa um grande impacto. Para a auxiliar de serviços Joana Paula da Silva, de 37 anos, que também mora no bairro As Populares com o marido e dois dos três filhos e ganha apenas um salário mínimo, os R$ 420 que recebia do Bolsa Família eram essenciais. O corte ocorreu no início do ano passado. “Eu estava recebendo, até que um dia não veio. Aí, eu fui lá onde faz o cadastro [na Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social de Pombal], e me disseram que faltava a frequência deles na escola para mandar para Brasília. Eu fui à escola, peguei e entreguei. Passei uns cinco meses indo e todo mês a menina que trabalha lá me dizia que ia vir. Todo mês era isso e nada”, conta.

Hoje os filhos de Paula têm 19, 17 e 11 anos. Atualmente, apenas a mais nova estuda.

Para estar no Bolsa Família, é preciso ter renda por pessoa de até R$ 85 mensais, mesmo que a família não tenha filhos menores de idade. Se a família tiver na sua composição crianças ou adolescentes de até 17 anos, o patamar passa para R$ 170 mensais. O valor vai aumentando dependendo da quantidade de crianças ou adolescentes na escola. Mas, para Joana, o corte representou uma grande surpresa. A explicação da frequência não a convenceu, já que os dois filhos mais novos iam para a escola todos os dias, e podiam provar. Talvez seja o fato de ter carteira assinada, questiona, mas já faz quatro anos que trabalha e só no ano passado foi cortado o Bolsa Família. “São quatro pessoas que moram na casa e vivem com um salário. Faz muita diferença para gente porque com o dinheiro eu pagava água, pagava energia, comprava o que estava faltando.”

Sem dinheiro, a água da família foi cortada. “Eu estou pegando da casa da vizinha. A energia, eu faço de tudo para conseguir pagar.” Joana contraiu dívidas, como pagar o botijão de gás, que custa R$ 70. “Esse mês mesmo, eu comprei o material [escolar] dela todo fiado”, diz, apontando para a filha. “Sem Bolsa Família, né?”, suspira.

Outros moradores de Pombal têm enfrentado cortes no Bolsa Família por justificativas variadas e pouco lógicas. Um dos casos mais tristes é o de Maria de Fátima dos Santos Souto, de 53 anos. Ela é deficiente auditiva e não escuta nem fala, por isso também nunca trabalhou. O benefício foi cortado em outubro de 2017. O motivo foi porque Maria de Fátima entrou com o pedido de aposentadoria por invalidez. Mas, mesmo esse pedido não sendo aprovado, o Bolsa Família foi cortado. Desde então, ela e o marido dependem quase que exclusivamente da ajuda da família para comer.

Durante a entrevista à Pública, quem ajuda na linguagem de sinais é a cunhada, Maria do Socorro Guedes. Ela vai conversando e informando muito do que se passa naquela casa. “Meu irmão trabalha na roça com os dedos aleijados devido a um acidente de carro que teve, sofrendo muito com dores, principalmente na coluna. Ele já tentou se aposentar, mas não consegue. Então, ele trabalha para não passar fome, mas a renda dele não passa de R$ 200. A mulher ajudava ele com o dinheiro do Bolsa Família. O filho ajuda eles também, nós ajudamos, a família dela. Todo mundo tem que dar alguma coisa, senão eles passam fome”, afirma.

“Eles estão para negar no INSS”

Não muito longe da casa do pescador Hélio, ainda no bairro As Populares, mora a coveira Sandreli de Sousa Medeiros, de 41 anos. Assim como o pescador, ela também enfrenta problemas com o INSS e teve o seu benefício do Bolsa Família suspenso. Funcionária pública desde 2012, depois de ter passado no concurso da prefeitura para trabalhar no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, Sandreli começou a ter problemas de saúde devido à profissão. “A doença que eu tenho, artrite, artrose, osteoporose, fibromialgia – foi o trabalho que causou. Coveira. Cavando. Acabou comigo”, resume.

Ela precisou pedir afastamento do cargo em março de 2016. São mais de 20 papéis entre laudos e atestados que Sandreli guarda, assinados por médicos diferentes, entre clínicos gerais, reumatologistas e ortopedistas. Atestados que informam o exato problema de saúde: ela se encontra em estado avançado de dores articulares, não podendo exercer suas funções laborais por tempo indeterminado. Laudos que descrevem que a paciente tem abaulamento discal, um processo de desgaste ou perda da elasticidade do disco intervertebral, em diferentes vertebras. Esse é o processo inicial da hérnia de disco. “Quando foi em 2016, eu me afastei em março e dei entrada no INSS, recebi alguns dias, menos de um salário mínimo. Voltei lá, foi então que começaram a me negar. Eu já dei umas três entradas. Tudo negado. Eu acredito que lá eles estão para negar”, lamenta.

Embora tenha os laudos, Sandreli não consegue se aposentar por invalidez. “Eu tomo oito comprimidos por dia. Tem dia que eu não me levanto da cama. Eu já estou tomando agora morfina”, conta. Os remédios custam mais de R$ 300. Apenas dois deles ela consegue pegar no posto de saúde. Algumas vezes, precisa economizar na feira para comprar os remédios. Quando não tem mais jeito, as dores voltam e ela acaba internada na emergência do Hospital Regional de Pombal.

Para piorar, ela perdeu o Bolsa Família porque, segundo consta no cadastro, é funcionária pública do município, mesmo que não receba o salário há quase três anos. Agora, Sandreli depende quase que exclusivamente da ajuda da família e dos vizinhos. A sua água está cortada por falta de pagamento e a energia já está com duas contas atrasadas.

Sentada em um banco de madeira na calçada de sua casa, com uma pilha de exames sobre as pernas, Sandreli explica as dificuldades para conseguir os remédios de que precisa para as dores. Já chegou a acionar o Ministério Público por causa da medicação, mas acaba parando nos problemas da burocracia, uma vez que precisa que algum médico preencha uma ficha afirmando que ela precisa dos medicamentos. “Nenhum dos médicos da cidade quis preencher minha ficha da Promotoria. Alguns porque sabem que é para eu colocar o município na Justiça, outros têm medo de serem chamados para depor”, diz.

O gás acabou em novembro do ano passado, e desde então ela come com a filha de 17 anos na casa da mãe, que é ao lado da sua. Enquanto mostra o fogão sem gás, Sandreli se lembra de quando era mais nova: naquela época ela também já passou por uma situação parecida. “Eu já sofri muito para trás também. Passei muita fome. Já cheguei a comer farinha com café para poder ir para a escola, e não foi uma nem duas vezes, não. Minha mãe fazia o café de manhã, a gente colocava um pouco de farinha dentro, mexia, comia e ia para a escola”, conta.

“Depois de tudo, eu nunca pensei que a gente passaria pelo que estamos passando.”

14.197 ações previdenciárias na Paraíba

Sem Defensoria Pública na cidade, a única maneira que algumas pessoas encontram para contestar na Justiça as aposentadorias suspensas é contratando um advogado particular. Jaques Ramos é o advogado de Hélio, Sandreli e muitos outros em Pombal e região. Ele explica que os processos esbarram na burocracia judiciária e ficam por meses parados. Segundo o advogado, são vários os problemas. Não existe Justiça Federal na cidade, apenas a Estadual. Os três juízes estaduais acumulam outras funções e não são preparados para a área previdenciária. E faltam médicos peritos que possam analisar os requerentes e dar o parecer contra ou a favor do INSS.

De acordo com os números do Tribunal de Justiça da Paraíba, há 14.197 ações previdenciárias impetradas na Justiça Estadual esperando uma resposta. Entre os 18 tipos diferentes de processos, os que têm os maiores números são: aposentadoria por invalidez (2.078), auxílio‐acidente (1.308), auxílio‐doença acidentário (1.760) e auxílio‐doença previdenciário (3.535). Na cidade de Pombal, as ações somam um total de 246 processos. Mais da metade é sobre auxílios‐doença previdenciários (148).

Como o andamento demora, muitos requerentes têm uma piora na sua situação durante o processo. “Normalmente, eles já estão doentes, então ficam mais nervosos porque gera medo. Teve um dos meus clientes que acabou no hospital quando, após uma revisão, ele teve a pensão cancelada”, contou o advogado.

A primeira com diploma na família

A paisagem amarelada revela a falta de chuva, tão comum em novembro. Para encontrar a casa de dona Aparecida Ferreira é preciso sair da BR-427 e pegar uma curta estrada de terra até o sítio Tabuleiro Redondo, na zona rural de Pombal. A temperatura da tarde chega a quase 40 ºC. Ao chegar, logo se vê o orgulho da família em uma faixa estendida na frente da casa: “Parabéns psicóloga Priscila Rêgo”.

Priscila é a primeira da família a concluir a universidade. Justamente naquele dia, ela tinha saído para fazer uma prova de concurso na cidade de Coremas. Priscila conseguiu se graduar graças ao programa de financiamento estudantil Fies e precisa quitá-lo este ano.

Mas, naquele mesmo dia, dona Aparecida contava à reportagem que a situação financeira se agravou em 2017. Foi quando cortaram o seu benefício do Bolsa Família. “Me disseram que eu tinha que renovar o cadastro e esperar. Eu renovei, mas passou um ano e seis meses, só então veio. Recebi um mês, em setembro, e foi cortado de novo. Já estava tudo mais difícil, só que ficou mais”, conta. O benefício foi cortado no início de 2017, após idas e vindas, chegou a ser depositado em setembro de 2018, um único mês nestes últimos dois anos. E nunca mais.

Era com o dinheiro do Bolsa Família que dona Aparecida conseguia pagar o transporte e a alimentação para a filha fazer faculdade. Atualmente, na casa de dona Aparecida moram três pessoas: ela, o marido, Manoel, e uma das filhas. O marido é o único que tem renda. Ele é produtor rural e vende o leite de umas poucas vacas. Para complementar a alimentação, planta milho e feijão, o restante tenta comprar quando o dinheiro dá. Por causa da falta de renda fixa, em teoria eles deveriam ter o direito ao programa, mesmo com os filhos já adultos. “Uma semana compra uma coisa, na outra compra outra. Não tem ajuda de ninguém, só de Deus. A gente come arroz, feijão, às vezes, faz macarrão, misturo com ovo. Não dá para comprar frutas.”

Aos 20 anos, Patrícia Rêgo ainda sonha em fazer uma faculdade como a irmã. Ela fez o Enem, mas não conseguiu atingir a pontuação necessária e pretende continuar tentando. Esta é a primeira vez que a estudante vive uma situação tão difícil. Ela disse que sempre ouvia muito os pais falarem sobre como eram os problemas de sua época, mas que para ela parecia algo distante. “Eu escutei minha mãe dizer que trabalhou muito em roça e que minha vó sofreu muito para criar eles, que nem calçado eles tinham. Meu pai conta que veio calçar uma sandália depois de 10 anos, uma Havaiana. Até que então, uns dois anos para cá, a gente vem passando uma crise muito grande, questão financeira e política também”, diz.

Apesar de bastante jovem, Patrícia vê o futuro com bastante pessimismo. Para ela, não há muita perspectiva de melhoras no futuro. “Eu não tenho mais esperança de melhoria aqui onde a gente mora.”

O otimismo não impera na comunidade, tanto que o secretário da Associação do Sítio Tabuleiro Redondo, Francinaldo José dos Santos, uma espécie de presidente de bairro, relembrou as principais mudanças do lugar nos 20 anos que ele esteve à frente da associação. O sítio tem aproximadamente 40 casas.

“Quando eu entrei, era muito difícil. Os anos de seca não tinha as facilidades que tem hoje. Houve uma grande mudança dos governos Lula para cá. É uma convivência com a seca, através de cisternas, abastecimento d’água com carro-pipa pelo Exército, teve construção de barragens subterrâneas, pequenos barreiros, Garantia-Safra. Coisa que a gente nunca teve nos governos passados. Tem uns programas que ainda estão continuando, mas defasado. Está começando a ficar difícil”, relata. “Já tem gente cozinhando à lenha. Aposentado que a renda não dá para trocar o bujão.”

A maior preocupação de Francinaldo é como as pessoas à sua volta vão conseguir se sustentar. Segundo disse, muitas famílias da comunidade tiveram benefícios cortados e aposentadorias suspensas e já não vem mais auxílio para aguentar os anos de seca. De acordo com o presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba (Aesa), Porfírio Loureiro, a Paraíba teve sete anos consecutivos de chuvas abaixo da média.

Em seu escritório, que fica em uma casa grande de primeiro andar no centro da cidade, onde funciona a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, a secretária Mayenne-Van de Sousa Bandeira recebe a reportagem para uma entrevista. Ela reconhece que houve cortes nos programas sociais e aponta a diminuição de valores do repasse como principal causa. “A gente mora numa cidade do interior da Paraíba, no sertão, pobre, onde não se tem indústria. Todos os nossos recursos são oriundos do Fundo de Participação dos Municípios”, explica. Mesmo assim, ela garante que a atual gestão se preocupa bastante com a situação da população. “Nós concedemos ajuda. Na maior parte foi cesta básica, ajuda financeira de água e luz, de gás de cozinha, urna funerária, kit bebê, aluguel social. A gente tem uma tabela para conceder até R$ 200 de aluguel. Temos mais de 30 famílias beneficiadas”, diz. Ela é coerente ao defender a atuação do governo, comandado por Abmael de Sousa Lacerda (MDB), mais conhecido como Verissinho. É seu marido.

Hoje, Verissinho está na prefeitura graças a um recurso de uma decisão do Tribunal de Justiça (TJ) da Paraíba. Em dezembro de 2017, ele teve seu mandato cassado por improbidade administrativa no seu primeiro mandato, em 2004, e foi punido com a suspensão dos direitos políticos por quatro anos. De acordo com o processo, o prefeito teria fraudado vários processos licitatórios. Entre as irregularidades investigadas, está o fato de ter ignorado o número mínimo de participantes na concorrência de licitação, a adoção por parte do gestor de carta-convite no lugar de tomada de preços e também a denúncia de que teria superfaturado a contratação de serviços de limpeza urbana. Para não perder o cargo, o prefeito recorreu e governa sob liminar, enquanto aguarda o julgamento do mérito pelo TJ.

A crise política tem a sua parcela de culpa na decadência de Pombal, segundo o pesquisador José Henrique Artigas, da UFPB. “Pombal teve problemas políticos, sai prefeito, entra prefeito, isso acabou deteriorando as contas públicas. Junta com isso a queda do Bolsa Família e as dificuldades de acesso à previdência rural. Cai a renda para consumo imediato das famílias; caindo a renda para consumo imediato, cai ICMS e o repasse proporcional estadual para o município. Então você tem um panorama de ladeira abaixo no setor fiscal do município. Num momento de ampliação da miséria, de queda da renda, diminuição do trabalho formal. Essa é uma situação que leva ao caos social”, avalia.

Ela devolveu o Bolsa Família
Na outra ponta da equação, estão as sertanejas. No início desta década, mais de 300 mulheres da cidade de Pombal devolveram o benefício do Bolsa Família, chegando à capa de jornais do Brasil inteiro, apontadas como símbolo de honestidade e superação. Elas argumentaram que já haviam conseguido melhorar um pouco mais a sua renda.

Uma delas é Maria de Sousa Pereira Medeiros, que vai fazer 70 anos em abril. A aposentada foi uma das primeiras pessoas a ser beneficiada pelo Bolsa Família. “Nós não tínhamos salário de nada”, fala, apontando para o marido. “A gente morava no sítio Maria dos Santos. Ele trabalhava na roça e eu trabalhava em casa.”

Pouco tempo depois de terem conseguido o benefício, o dono da terra onde moravam arrendou para terceiros e os dois tiveram que ir embora. “Viemos morar na cidade porque a terra não era nossa, éramos apenas moradores. Tínhamos um trocado, o patrão também ajudou e assim conseguimos comprar este terreno, fazer a ‘sapata’ e construir a casa. A nossa vida está mais fácil. Porque de primeiro a gente não tinha renda de nada e agora já tem as duas aposentadorias para gente e para ajudar nossos filhos”, conta Maria.

“Quando eu me aposentei, eu recebi um papel pedindo para eu comparecer na ‘casa branca’ [como é conhecida a Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social de Pombal]. Quando cheguei lá, a menina me disse: ‘Olha, dona Maria, nós chamamos a senhora aqui para saber se é de livre vontade que a senhora poderia entregar o Bolsa Família. A senhora já está aposentada e tem muita gente que não tem benefício de nada’. Aí eu disse: ‘Minha filha, eu entrego’.”

“E entreguei porque eu sabia que tinha muita gente passando necessidade e que não tinha renda de nada, como a gente não tinha antes”, explica, fazendo valer o que dizia Ariano Suassuna: o sertão continua seco, quente e esperançoso, sempre. (247)

Related Posts