Sessenta anos após sua criação, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vem atraindo a atenção internacional e provocando polêmica com sua atuação cada vez mais ampla no financiamentoda expansão de multinacionais brasileiras e no papel de apoiador da política industrial do governo brasileiro.
Como peça central em todas as estratégias de desenvolvimento implementadas no Brasil nos últimos 60 anos – da fase inicial da industrialização do país, nos anos 50, ao desenvolvimento da indústria intermediária e de bens de capital nas décadas de 60 e 70, e as privatizações dos anos 90 – a ação do BNDES sempre alimentou debates domésticos.
Representantes de ONGs e movimentos sociais ligados a rede conhecida como Plataforma BNDES, por exemplo, defendem que não há muito o que comemorar e alguns grupos estão se organizando para lançar, no fim do mês, uma campanha pedindo a responsabilização judicial do BNDES pelas “violações de direitos dos trabalhadores e das populações atingidas por empreendimentos financiados pelo banco”.
Mas uma das novidades desta nova fase consolidada pelo banco ao completar seu sexagésimo aniversário parece ser a atenção que o “BNDES do século 21″ atrai também fora do Brasil entre diversos setores – de movimentos sociais a meios acadêmicos e políticos, consultorias e veículos da imprensa.
Atenção internacional
A revista britânica The Economist é uma das publicações que vêm analisando o papel atual do BNDES. Para a revista, a instituição “cresceu rápido demais” e ajudou o Brasil a produzir um “novo modelo de política industrial” no século 21.
Algumas das ONGs que pressionam por mais transparência no BNDES (como o Instituto Mais Democracia e a Rede Brasil de Instituições Financeiras Multilaterais) têm parceiros em redes internacionais que até os anos 1990 supervisionavam o FMI e o Banco Mundial e também cooperam com grupos afetados por obras financiadas pelo BNDES na América Latina – como indígenas bolivianos e peruanos.
“O BNDES começou a atrair atenção internacional nos últimos anos, conforme o Brasil foi alçado à categoria de ator global”, diz Mahrukh Doctor, professora da Universidade de Hull, na Grã-Bretanha, que tem feito pesquisa sobre o banco.
Para a economista indiana Jayati Ghosh, da Jawaharlal Nehru University, com sede em Nova Déli, o banco brasileiro tornou-se um “modelo” para outros países em desenvolvimento. Aldo Musacchio, professor da Universidade de Harvard, nos EUA, estuda o BNDES para entender os diferentes tipos de relação Estado-mercado que vêm ganhando força com a crise global.
De acordo com esses três especialistas, pelo menos três fatores explicam esse crescente interesse pelo banco. Primeiro, a mudança na “escala” dos seus desembolsos. Segundo, a expansão de multinacionais brasileiras pelo globo, com o apoio direto ou indireto do BNDES.
Obras em angolaObras da Odebrecht em Angola: atividades da empreiteira crescem no país com apoio do BNDES
Por fim, a crise econômica internacional, que levou a uma revisão das teorias sobre as relações Estado-mercado e deu fôlego aos que defendem a adoção de políticas industriais.
Mudança de escala
Hoje, um de cada cinco reais investidos no Brasil sai dos cofres do BNDES – incluindo uma fatia importante dos recursos para as obras da Copa de 2014 e Olimpíada de 2016.
Os desembolsos do banco saltaram de R$ 38,2 bilhões (US$ 18 bilhões), em 2002, para R$ 150 bilhões (US$ 72 bilhões), no esperado para esse ano (que equivaleria ao dobro do PIB da Bolívia). E desde 2010 têm superado os do Banco Mundial.
“Embora a Índia tenha tido muitos bancos de desenvolvimento nos anos 50 e 60, deixou que a maior parte deles fosse extinta nos anos 90″, diz Gosh.
“A China tem bancos estatais até maiores que o BNDES, mas só o Brasil tem um banco de desenvolvimento de tanto impacto em um contexto de uma economia de mercado e globalizada.”
Conforme os desembolsos cresciam, o próprio BNDES também passou a olhar para além das fronteiras do país, apoiando a expansão de multinacionais brasileiras de três maneiras.
Em primeiro lugar, ajudando a formação de grandes grupos nacionais – principalmente por meio do estímulo a fusões e aquisições, como aponta Doctor.
Segundo, financiando investimentos diretos brasileiros no exterior – um tipo de operação que só se tornou possível graças a uma alteração no estatuto do banco, em 2002, e consumiu mais de R$ 9 bilhões (US$ 4,4 bilhões) desde 2005.
Foi esse o esquema usado para permitir as compras bilionárias de frigoríficos nos EUA que transformaram a JBS Friboi na maior empresa da cadeia de proteína animal do mundo, por exemplo. “Uma estratégia que transforma uma empresa pequena do interior de Goiás em um líder global de mercado em seis ou sete anos certamente desperta o interesse dos que observam tal transformação”, diz Doctor.
África e América Latina
A terceira forma pela qual o BNDES tem ajudado a expansão das multinacionais ‘made in Brazil’ é por meio do financiamento ao conteúdo brasileiro em obras de infraestrutura no exterior, principalmente na América Latina e África.
Luciano Coutinho (Foto Agência Brasil)O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, é um dos mentores da nova política industrial brasileira
A primeira transação desse tipo só foi feita em 1998 – com a China. De 2003 a 2010, foram desembolsados US$ 5,1 bilhões para financiar o envolvimento de construtoras brasileiras em obras em Angola, Argentina, República Dominicana, Venezuela, Chile, Ecuador, Peru, Cuba, Paraguai, África do Sul, China e Uruguai.
Foram prometidos mais US$ 680 milhões do banco para o Porto de Mariel, a maior obra de infraestrutura de Cuba desde a revolução de 1959, US$ 342 milhões para uma hidrelétrica na Nicarágua e US$ 394 milhões para uma estação de tratamento de água no México. E recentemente novos países entraram para a lista dos destinos dos empréstimos do banco, como Moçambique (onde seria financiada a construção de um aeroporto) e Gana (estradas).
A mobilização de movimentos sociais bolivianos e peruanos contra obras financiadas pelo banco é em parte uma consequência dessa expansão, segundo Doctor. “Mas também é consequência da falta de salvaguardas ambientais e sociais consistentes, que o banco deveria começar a impulsionar dentro e fora do Brasil”, acredita o acadêmico e ativista João Roberto Lopes Pinto, do Instituto Mais Democracia.
Para garantir o apoio a expansão dessas empresas e ajudar a atrair investimentos para o Brasil o próprio BNDES criou um departamento responsável por suas operações internacionais em 2007 e começou a se internacionalizar, abrindo escritórios em Montevideu e Londres, dois anos mais tarde.
Pós-crise
O resultado dessas tendências só poderia ser mais atenções internacionais, embora o BNDES não esteja necessariamente desbravando novos caminhos nessas áreas.
“Diversos países emergentes estão adotando estratégias semelhantes, usando bancos estatais para fortalecer e apoiar a expansão de suas empresas pelo globo”, explica Musacchio. “As políticas de formação de ‘campeões nacionais’ estão em alta entre eles – então é natural que haja apreensão entre países desenvolvidos.”
João Carlos Ferraz, vice-presidente do BNDES concorda parcialmente com Musacchio, mas acrescenta: “Apoiar a expansão global de empresas nacionais é algo que as nações desenvolvidas cansaram de fazer no passado, quando não viam nenhum problema nisso”, opina.
“O que acontece é que nesse momento de crise vários países – inclusive os mais ricos e tradicionalmente liberais – estão percebendo que há mais espaço para bancos públicos.”, diz Ferraz.
O comentário faz referência, precisamente, ao terceiro motivo apontado pelos especialistas estrangeiros para o interesse na experiência do BNDES: o fato de que a crise provocada pelos mercados financeiros deu novo fôlego aos que defendem a ação do Estado na promoção tanto de políticas industriais quanto de políticas monetárias anti-cíclicas.
“Nos anos em que o Brasil cresceu bastante apesar da crise, até 2010, de fato havia interesse em entender se isso se devia ao uso de instrumentos anti-cíclicos de expansão do crédito, como o BNDES”, acredita Neil Shearing, da consultoria Capital Economics, em Londres. “Por outro lado, o último pacote econômico adotado pela presidente Dilma Rousseff foi um reconhecimento de que essa expansão só consegue manter o crescimento por um período limitado sem mudanças estruturais.”
Para Musacchio um dos diferenciais da ação do BNDES na última década que tem sido observada de perto em meio à crise é a ampliação de sua atuação nos mercados de capitais, via BNDESPar.
Ele diz que se até os anos 1990 o Estado mantinha uma mão pesada na economia com as estatais, com as privatizações, uma tendência ganhou força, se consolidando na última década: a do Estado como “acionista minoritário” em empresas privadas.
Protesto contra Belo Monte (Foto AFP)Protesto contra a usina Belo Monte, financiada pelo BNDES
Críticas
É claro que, nos últimos anos, o BNDES nem sempre tem atraído atenções por bons motivos. Na realidade, as críticas se multiplicaram na mesma proporção dos desembolsos do banco.
De um lado, organizações da sociedade civil brasileiras e latino-americanas pedem que o BNDES aplique regras sociais e ambientais mais rígidas nos projetos que financia.
No outro extremo do espectro ideológico, economistas liberais apontam os efeitos dos empréstimos na inflação. “Do ponto de vista macroeconômico, por exemplo, o banco cria quase tantos problemas quanto os que resolve”, acredita Shearing.
Mas para Musacchio e Doctor, as críticas mais contundentes são as que enfatizam a falta de transparência sobre os critérios de seleção e condições dos empréstimos e a concentração dos financiamentos nas grandes empresas.
O BNDES nasceu como um banco dos “grandes” projetos industriais e obras de infraestrutura em 1952. O “S” de “social” só foi adicionado ao seu nome em 1982.
Como explica Ferraz, nos últimos anos foram feitos esforços para ampliar os empréstimos a pequenas empresas. A criação do cartão BNDES é um exemplo de avanço nessa área. Ainda assim, a fatia dos empréstimos destinada a grandes empresas variou em torno de 60% a 80% nos últimos anos.
Para Musacchio, ainda não está claro por que, em um contexto de restrição de crédito como o brasileiro, o BNDES empresta dinheiro público para grupos globais, que poderiam conseguir recursos em mercados internacionais – e só com mais transparência seria possível esclarecer essa questão.
Os dados são especialmente limitados no caso de operações internacionais – para os quais o banco divulga apenas o volume de financiamentos agregado por país de destino.
“Não somos perfeitos e admitimos que precisamos avançar em questões como transparência, mas já demos importantes passos nesse sentido e a ideia é continuar avançando”, diz Ferraz.
Uma série de eventos e seminários tem marcado o aniversário da criação do BNDES. Na sede do banco, no Rio, uma exposição com a história do banco pode ser conferida até dia 31.
Fonte: BBC Brasil