Transporte

CNH sem autoescola? Entenda a proposta do governo federal e as críticas de entidades do setor

Redução de custo em até 80%, segurança viária e desemprego estão no cerne da discussão

A proposta de permitir a emissão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) sem a obrigatoriedade de aulas em autoescolas tem gerado debate intenso

O governo federal, por meio do Ministério dos Transportes, abriu consulta pública para debater a sugestão, que visa a remover a obrigatoriedade de aulas em autoescolas para a obtenção da CNH. O objetivo principal, segundo a gestão, é modernizar o processo e tornar o documento mais acessível.

O projeto da gestão busca permitir que os candidatos escolham livremente como se prepararão para os exames teórico e prático, podendo contratar um Centro de Formação de Condutores (CFC) ou instrutores autônomos credenciados. As provas, no entanto, de acordo com a proposta, continuariam sendo obrigatórias para atestar a capacitação do condutor.

Sobre a proposta
Hoje, para obter a CNH, o candidato é obrigado a cumprir pelo menos 45 horas de aulas teóricas e 20 horas de aulas práticas em autoescola. A nova proposta em consulta pública pretende:

 – Eliminar a obrigatoriedade dessas cargas horárias mínimas: as aulas práticas passariam a ser opcionais.

– Permitir que o candidato escolha como se preparar: pode usar um CFC, aprender com instrutor credenciado ou estudar no formato digital oferecido pela própria Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran).

– Manter os exames teórico e prático como exigência: independentemente do método de preparação, ainda será preciso demonstrar aptidão nos testes.

Promessa de economia
O principal argumento favorável à proposta é a redução expressiva no custo da habilitação. De acordo com dados do Ministério dos Transportes, ao suprimir a obrigatoriedade das aulas em autoescolas, o valor de R$ 3 mil a R$ 4 mil para tirar a CNH poderia cair em até 80%.

“O que estamos propondo é simplificar o processo e dar liberdade de escolha ao cidadão. Hoje, mais de 20 milhões de pessoas dirigem ou pilotam sem habilitação no país, muitas vezes por causa do alto custo da primeira CNH, que pode chegar a R$ 5 mil em alguns estados. Nosso foco é reduzir essas barreiras e permitir que o candidato escolha como quer se preparar, seja por uma autoescola, um instrutor autônomo ou até plataformas digitais credenciadas”, disse o secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, em pronunciamento oficial.

A proposta prevê, ainda, a facilitação dos processos para as categorias C, D e E (veículos de carga e transporte de passageiros), permitindo que outros entes, além das autoescolas, ofereçam serviços.

O novo modelo se inspira em práticas de países como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Japão, Paraguai e Uruguai. A expectativa é que, ao habilitar mais condutores, a informalidade diminua, contribuindo para um trânsito mais regularizado e seguro.

Entidades do setor, porém, apontam um dado importante: uma parte significativa do custo total (taxas do Departamento de Trânsito, exames médico e psicológico) não depende da autoescola.

De acordo com o economista da Fecomércio-PE Rafael Lima, boa parte do custo está nas taxas dos Departamentos de Trânsito (Detrans) e regulamentações impostas pelo governo, que somadas podem chegar a R$ 780 por candidato. Ou seja, embora a proposta possa reduzir parte da despesa, não eliminaria todos os encargos envolvidos.

Já o Ministério dos Transportes diz que o objetivo é garantir maior liberdade e economia aos futuros motoristas. De acordo com a pasta, são esses exames que atestam se o condutor está devidamente capacitado para dirigir. O objetivo é modernizar o sistema atual, garantindo mais liberdade e economia aos futuros motoristas, sem abrir mão das exigências de segurança viária.

O ministério acredita que o processo seria mais ágil e menos burocrático, contando com a digitalização através da Carteira Digital de Trânsito (CDT) e plataformas semelhantes a aplicativos de mobilidade para conectar candidatos e instrutores.

“Todos os brasileiros, especialmente aqueles com menor renda, serão beneficiados. Atualmente, cerca de 161 milhões de brasileiros estão em idade legal para dirigir, mas muitos ainda não possuem habilitação, em grande parte, devido ao alto custo do processo atual”, disse o ministério em nota especial à Folha de Pernambuco.

Para Ygor Valença, presidente da Federação Nacional das Autoescolas do Brasil (Feneauto) e do Sindicato dos Centros de Formação de Condutores (SindCFC-PE), a proposta foi apresentada sem diálogo com o setor e sem a participação da Câmara Temática de Educação para o Trânsito do Contran, que ficou desativada por anos.Ainda segundo ele, não houve reuniões com o Ministério dos Transportes nem com o ministro Renan Filho, responsável pela medida.

Críticas e alerta à segurança viária
A Feneauto, o SindCFC-PE e a Fecomércio-PE criticam a proposta, alertando que a medida pode reduzir a qualidade da formação e comprometer a segurança no trânsito.

Entre os motivos, as entidades listam:

– Risco de formação deficiente: ao permitir que alguém “se prepare sozinho”, sem um currículo padronizado fiscalizado, pode haver lacunas importantes no aprendizado.

– Dependência apenas do exame final: confiar somente no teste para garantir aptidão ignoraria o processo contínuo de ensino e correção de erros.

– Custo social oculto: alguns alertam que a economia no custo da CNH para o indivíduo pode custar mais à sociedade — em acidentes, despesas médicas, sofrimentos e vidas.

– Desalinhamento com o Pnatrans: o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans) tem a educação no trânsito como pilar central. Romper com práticas formativas rígidas pode contrariar esse plano.

“A sociedade precisa entender que o valor economizado na obtenção da carteira de motorista será pago depois pela própria população, em forma de mais acidentes, mais internações e maior pressão sobre os serviços de saúde. Estamos falando de vidas, não de burocracia. O Governo não abriu diálogo com os sindicatos e representantes do setor, e partiu para essa ação que, ao nosso ver, é totalmente incoerente com os compromissos internacionais do Brasil no Pnatrans, que tem como um dos pilares centrais a Educação no Trânsito”, afirmou Valença.

Presidente do órgão afirmou que eliminar a exigência de aula abre uma “lacuna crítica” na formação. “Confiar apenas no exame final para atestar a aptidão, ignorando o processo padronizado de aprendizado, é considerada uma visão ingênua sobre a complexidade de dirigir com segurança”, enfatiza Valença.

Embora a medida prometa democratizar o acesso à CNH, os críticos apontam um custo social elevado. Segundo dados do Ministério da Saúde, o SUS gastou R$ 449 milhões em 2024 com vítimas de acidentes de trânsito.

Ainda conforme nota, o Ministério dos Transportes esclarece “que não se trata da CNH Sem Autoescola”, mas sim de tornar a obtenção da habilitação mais acessível.

“O projeto não acaba nem diminui a importância das autoescolas. Elas continuarão oferecendo aulas, mas a exigência legal de carga horária mínima para as aulas práticas será dispensada. Além disso, os cursos poderão ser ofertados em formato digital, por meio de plataforma disponibilizada pelo próprio Ministério dos Transportes. Dessa forma, as autoescolas seguem oferecendo serviços complementares e personalizados, com foco na qualidade e na acessibilidade.”

Impacto no mercado
Pela nova proposta, os CFCs continuariam autorizados a oferecer cursos, mas perderiam a exclusividade na preparação. No entanto, as entidades temem um “desastre social”.

O setor reúne mais de 12 mil autoescolas no Brasil. A Feneauto estima que a proposta possa levar ao fechamento de 15 mil centros e à perda de mais de 170 mil postos de trabalho. Outras estimativas apontam para cerca de 300 mil empregos diretos e indiretos no país.

Só em Pernambuco, 266 unidades operam, e 5.819 instrutores estão registrados no Departamento de Trânsito de Pernambuco (Detran-PE).

Estamos tratando de um tema que envolve vidas humanas e milhares de empregos em Pernambuco e no Brasil. A retirada da obrigatoriedade das aulas teóricas e práticas nas autoescolas traria prejuízos irreparáveis, porque enfraquece a educação para o trânsito e desmonta uma cadeia produtiva que sustenta famílias e contribui significativamente para a economia do estado”, afirma o presidente da Fecomércio-PE, Bernardo Peixoto.

As entidades do setor defendem que são a favor da redução de custos e já apresentaram alternativas, como o projeto “CNH do Povo”, que poderia baratear a habilitação em até 52% sem comprometer a qualidade da formação.

Eles insistem que o governo deveria reduzir as taxas e encargos cobrados pelos Detrans ao invés de fragilizar a segurança viária.

Presidente da Fenauto, Ygor Valença diz não ser contra mudanças que facilitem o acesso à CNH, mas que defende um processo justo, em que a população pague menos, mas com segurança garantida.

Os sindicatos e organizações do setor já apresentaram alternativas viáveis, mas não foram ouvidos. O que pedimos é simples: diálogo verdadeiro e responsabilidade com a vida de milhões de brasileiros”, concluiu Valença.

Em defesa do projeto, o secretário nacional de Trânsito enfatiza que as autoescolas não vão acabar e que continuam previstas na minuta e seguem como entidades fundamentais na formação do condutor.

“O que muda é que deixam de ser o único caminho possível. Hoje, a obrigatoriedade de frequentar um CFC e cumprir horas fixas de aula teórica e prática criou um modelo engessado e caro. A ideia é eliminar burocracias e ampliar as opções, mantendo a segurança e a qualidade na formação”, explica Adrualdo Catão.

Ministério dos Transportes enfatiza que os exames teórico e prático continuam sendo obrigatórios no processo da obtenção da CNH | Foto: Paulo Maciel/Detran-PE

Próximos passos da proposta
minuta da norma está disponível na plataforma Participa + Brasil, e cidadãos, entidades e especialistas têm até o dia 2 de novembro para enviar sugestões.

Após o prazo, as sugestões serão encaminhadas a uma Câmara Temática do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Caberá ao órgão avaliar as contribuições e deliberar sobre a regulamentação final, que será feita por meio de uma Resolução.

Segundo o governo, uma vez avaliada e aprovada, a mudança entra em vigor de imediato, não havendo necessidade de alteração no Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

O que diz a minuta 
A minuta da proposta detalha como o governo pretende aplicar o novo modelo. O texto, elaborado pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), traz diretrizes para flexibilizar a formação, digitalizar etapas e reduzir custos, sem abrir mão dos exames obrigatórios.

O texto ainda propõe a criação da Licença de Aprendizagem Veicular (LAV) em formato digital, substituindo o antigo documento físico de aluno.

O documento ainda prevê plataformas e aplicativos oficiais para registrar aulas, horários e desempenho, conectando alunos e instrutores em um sistema monitorado, o que promete transparência e rastreabilidade.

Mesmo com a maior liberdade de escolha, os Detrans seguiriam responsáveis pelo credenciamento e fiscalização dos instrutores e cursos.

Já os exames médicos, psicológicos e taxas administrativas continuariam obrigatórios, o que significa que o custo total ainda dependeria desses encargos.

Fonte: FolhaPE

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