Duas ações da PF (Polícia Federal) nesta semana miraram o setor financeiro do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção paulista que atua nacional e internacionalmente. Tanto a Caixa-Forte como a Cravada prenderam integrantes da facção, dinheiro, armas e drogas. Conversas de criminosos vazadas pela PF nesta sexta-feira (9/8) sugerem uma relação do grupo criminoso com o PT (Partido dos Trabalhadores), conforme noticiadopelo jornal O Estado de S. Paulo.
Em entrevista à Ponte, a socióloga e professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) Camila Nunes Dias, uma das principais pesquisadoras sobre PCC no Brasil, explica que a relação entre os criminosos e partidos políticos exposta na conversa vazada da investigação é, no mínimo estranha, “para não dizer má intenção”. “Não dá para acusar um determinado partido de ter essa relação com o PCC porque ela não é partidária, não tem relação com programa ou ideologia, é uma questão instrumental. Onde há a possibilidade de costurar um acordo, através de relações pessoais, ela acontece, não há relação no âmbito de um partido com o PCC”, sustenta Camila, autora do livro “A Guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, em conjunto com o jornalista Bruno Paes Manso, no qual detalha o avanço da facção de São Paulo para todo o país – e internacionalmente.
Outro aspecto analisado por Camila Nunes Dias é o quanto operações como essas atingem o dia a dia do crime organizado. A pesquisadora considera que as recorrentes ações policiais até interferem em grupos pequenos dentro do PCC, mas a reorganização é feita rapidamente e sem grandes prejuízos. Para ela, nem mesmo a transferência dos líderes da facção de São Paulo para presídios federais atingiu de forma incisiva a dinâmica do grupo. “Há tempos, o PCC assumiu uma forma de atuação que não depende de pessoas especificas. O grupo tem um funcionamento quase no automático e as pessoas têm posições ocupadas e, se elas ficam fora do ar, são rapidamente substituídas”, explica.
Confira a entrevista completa com a professora Camila Nunes Dias:
Ponte – Como essas operações da Polícia Federal impactam diretamente no dia a dia do PCC?
Camila Nunes Dias – Claro que não dá pra dizer que não tem nenhum impacto. Essas operações podem desorganizar algumas células, atividades, em geral dão prejuízos, sim, com perda de armas, dinheiro, mercadoria, as prisões de pessoas, mas o que temos vistos na últimas décadas são ações mais ou menos regulares, feitas rotineiramente, que desorganizam em algum momento uma célula, mas que depois se reorganiza. Estava lembrando que em 2001 teve uma ação do MP (Ministério Público) de São Paulo logo depois da megarrebelião ocorrida daquele ano, onde foram encontradas centrais telefônicas. Nessas décadas, a cada operação ouvimos ‘agora desestruturou, quebrou as pernas do PCC’. Vemos que desestrutura parcialmente algumas delas, mas os grupos vêm demonstrando uma capacidade muito grande de se recompor. Infelizmente, como só se investe na repressão, tudo aquilo que fortalece o recrutamento continua funcionando muito bem. É mais uma questão de reorganização do crime. Pessoas para ocuparem o lugar não faltam, não faltam motivações para isso. Não temos uma política que dê a jovens, especialmente em situação de vulnerabilidade, outras oportunidades e possibilidades na vida, como inserção no mercado de trabalho, por exemplo. A cada vez que se faz uma operação, é só mais um gelo sendo enxugado.
Ponte – Considera real a chance de uma represália por parte da facção?
Camila Nunes Dias – Não acho, não. Nem quando se transferiu as lideranças de São Paulo para o sistema penitenciário federal, no início do ano, se teve represália. Nesse momento em que estamos, que não tem nenhum apelo eleitoral, não estamos nesse período que poderia gerar pressões maiores sobre governos. Há a leitura de que qualquer reação não produzirá impacto positivo para reverter o que esta sendo feito – e pode agravar ainda mais a ação. Não vejo nenhuma possibilidade.
Ponte – Como a transferência das lideranças interferiu nos negócios do PCC?
Camila Nunes Dias – Não alterou em nada. Para as pessoa transferidas, sim. É um regime mais duro, a comunicação é mais difícil. Há tempos, o PCC assumiu uma forma de atuação que não depende de pessoas específicas. O grupo tem um funcionamento quase no automático e as pessoas têm posições ocupadas e, se elas ficam fora do ar, são rapidamente substituídas. O isolamento de X, Y ou Z acaba não afetando em nada o dia a dia, a rotina do grupo como um todo.
Ponte – Nesta sexta-feira, a PF vazou uma conversa em que um suposto integrante do PCC aponta ter ‘diálogo cabuloso’ com o PT. Como avalia esse vazamento?
Camila Nunes Dias – Acho muito estranho, vou confessar, até pelo próprio vazamento em si. Estamos vivendo uma discussão aprofundada sobre a questão dos vazamentos, o chefe da PF está sendo acusado de diversas irregularidades em sua conduta como juiz e deslegitima esses documentos por serem supostamente oriundos de vazamento. Ao mesmo tempo, a PF vaza documentos de investigação sigilosa e tem impactos supostamente fortes contra o principal rival político do atual governo. Se questiona como a PF pode vazar, se isso não podeira invalidar toda a investigação.
Ponte – E o que destaca do conteúdo do vazamento, em que liga o PCC a um partido político específico?
Camila Nunes Dias – No trecho que eu li, não faz o menor sentido aquela sugestão de que haveria um diálogo com o PT. Em primeiro lugar, se analisarmos o contexto da conversa, os presos estão se referindo a transferência das lideranças para o sistema federal e quem, em muitos anos, nunca quis transferir as lideranças de SP para o federal foi o PSDB. Se alguém dialoga, no que diz respeito a esse fato citado no diálogo, não é o PT, é o PSDB. Essas lideranças, esse tempo todo, ficaram em São Paulo e há quase 30 anos o estado é governado pelo mesmo partido. Não faz o menor sentido. A transferência não é prerrogativa do Governo Federal, é do estadual. O federal só verifica se tem vagas, não decide se vão ou não. Da mesma forma, esses diálogos, da maneira que foram divulgados, servem para dar um ar de confiabilidade e de valorizar o trabalho do ministro da Justiça, como se os presos estivessem receio dele, de como ele é duro.
Ponte – É comum presos ligados à facção tratarem de uma autoridade em específico?
Camila Nunes Dias – É estranho, um diálogo que não soa natural entre criminosos. É esquisito, não é comum, ainda mais neste momento, em que há tantos ataques ao ministro quanto sua conduta. Confesso que é bastante estranho. Os presos, criminosos em geral, não costumam ficar preocupados com pessoas específicas no governo, não têm preocupação nem de comentar, nem de pessoalizar. É estranho até saberem quem é o ministro da Justiça. Em geral, as autoridades que eles mais diretamente reconhecem são a Polícia Militar e as do sistema prisional. É difícil falarem de alguém tão especificamente, bastante incomum. E, finalmente, sobre o partido, é uma grande sacanagem querer relacionar o PCC ao PT. No que já conseguimos pesquisar nesses anos, se há uma relação desses grupos com partido político, não é com um apenas, ela se costura nas franjas e locais onde esses indivíduos estão presentes e na relação que estabelecem nos bairros, com pessoas que estão na política mais local, como prefeituras, os vereadores, e com todos os partidos.
Ponte – Temos o caso de Ney Santos, ex-prefeito de Embu das Artes, suspeito de ter ligações com a facção, que é integrante o PRB…
Camila Nunes Dias – Ele era do PRB e, antes, era do PSC. Ou seja: se for olhar outros tantos vereadores, prefeitos e até deputados estaduais que já se apontou essa relação, vemos que estão espalhados em muitos partidos políticos. O PRB é um dos que mais se sobressai dessa relação, mas não dá para acusar um determinado partido de ter essa relação com o PCC porque ela não é partidária, não tem relação com programa ou ideologia, é uma questão instrumental. Onde há a possibilidade de costurar um acordo, através de relações pessoais, ela acontece, não há relação no âmbito de um partido com o PCC. É de um equívoco enorme, para não dizer má intenção, mesmo.
Ponte – Há o boato em São Paulo de que, em maio aos Crimes de Maio de 2006, no revide dos agentes do Estado aos ataques do PCC, com mais de 500 mortos, houve um acordo entre o governo do PSDB à época com a facção. Até que ponto essa história é apenas boato?
Camila Nunes Dias – É um boato na maneira como é narrado, nas vezes em que é reproduzido. Não é boato se observamos a estabilidade que se constituiu em São Paulo nas prisões: praticamente não tem rebelião, são casos pontuais e de vez em quando. Não tivemos mais rupturas, crises na segurança e no sistema prisional e, se observar, as taxas de homicídio também. Em São Paulo, os homicídios continuam caindo. Ele [o acordo]não é um boato na medida em que, o que quer que tenha acontecido, fato é que o PCC tem em SP uma estabilidade sem precedentes em qualquer outro local do Brasil. Tem representatividade no estado como um todo como protagonista do crime, ator muito importante não só na capital e região metropolitana, mas no estado e dentro das prisões. Continua sendo protagonista, exercendo o controle em mais de 90% das unidades prisionais do estado. Não dá para dizer que alguém do governo sentou com integrantes do PCC, aí entra a questão do boato. Mas se olharmos o efeito da reação, politicamente, vem sendo bastante favorável a manutenção das mesmas pessoas no poder do estado. Se consegue estabilidade naquilo que é mais importante eleitoralmente, que são os homicídios. E São Paulo é tido como exemplo no mundo de segurança pública bem sucedida. Será que houve aqui uma política de segurança que explique e justifique essa manutenção? Eu acho que não, não teve essa política que explique. Fato é que a forma como o PCC atua em SP favorece a manutenção desse discurso. (Ponte)