Com descontos fantasiosos, grandes redes de farmácia transformam medicamentos em produtos de consumo e não de saúde, enquanto sufocam pequenas drogarias
Materia publicada originalmente no Jornal Metropole em 14 de agosto de 2025
Nas ruas e esquinas de Salvador e das principais cidades brasileiras, canais chamativos de promoção acendem e oferecem “descontos imperdíveis” nas farmácias. Mas, por trás do suposto benefício e da onda que só na capital baiana fez o número de drogarias multiplicar por oito nos últimos 25 anos, se desenha um tecido complexo que vai muito além de descontos e estratégias mercadológicas à custas de privacidade, mistura ainda riscos à saúde coletiva, o fenômeno da medicalização da vida e a penosa sobrevivência de pequenos negócios.
Consumo em detrimento da assistência
A sede por vendas de medicamentos – refletida nos descontos massivos via CPF – eleva um cenário já claro de medicalização da população: tudo é resolvido com cápsulas e comprimidos. Junto com esse fenômeno vem o lucro para os grandes grupos de farmácias, claro, mas também o risco de efeitos adversos, interações medicamentosas e o agravamento de doenças. O alerta é do médico sanitarista Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que aponta nas grandes redes de farmácia uma visão de remédios como produtos de consumo e não de assistência.
“As grandes redes vivem de esticar a corda o quanto podem. O supermercado não pode vender remédio, mas hoje está uma discussão muito grande no sentido dos supermercados poderem vender os medicamentos que são isentos de prescrição. Quer dizer, nós estamos tratando o medicamento como um produto de consumo e não como um produto de saúde pública”, critica o médico sanitarista Gonzalo Vecina.
Receita do lucro
“Compre duas caixas, leve três”. As estratégias de venda das farmácias apostam em uma lógica de consumo puramente mercadológico, como se fosse qualquer outro produto. É criado uma equivalência, por exemplo, entre medicamento e gênero alimentício, “se compra mais, paga menos, é isso que importa”. Como se já não bastassem os descontos via CPF, vêm as promoções por volume de compra – uma brincadeira com o preço dos remédios que, claro, incentiva a automedicação.
A saída é uma só. Segundo Gonzalo, a única alternativa para mudar esse cenário é transformar as farmácias em estabelecimentos voltados para a assistência farmacêutica, com políticas que garantam o acesso ao medicamento de forma tão universal quanto o acesso ao ato médico, como deveria ser.
Parcerias no Congresso
As discussões sobre os impactos dessas estratégias de venda das farmácias ainda se arrastam e carecem de mais maturidade. A análise é do deputado Chico Alencar (Psol-RJ), que enxerga esse modelo de comercialização das grandes redes como “um escândalo”. O motivo, segundo ele, para a dificuldade de avançar com soluções é o lobby da indústria farmacêutica, que ainda detém poder em larga escala no Congresso.
“É um abuso de poder das grandes farmacêuticas. É incompatível com a verdadeira busca da saúde pública”, afirma. E complementa: “Eu diria que o debate é feito de maneira muito superficial no parlamento. Qualquer tipo de regulamentação é vista como autoritarismo. Por trás disso, há, claro, sempre um lobby fortíssimo e muitos interesses ocultos em jogo do setor da saúde que é muito mercantilizado no Brasil”, explica.
É verdade que o Congresso Nacional até intensificou o debate sobre a regulamentação das práticas comerciais nas farmácias, especialmente no que diz respeito ao uso de dados pessoais e à transparência dos descontos oferecidos. Entre os projetos em tramitação, destaca-se um que pretende proibir a exigência do CPF para que os consumidores tenham acesso a descontos e vetar o compartilhamento desses dados com terceiros. À parte, os parlamentares também discutem a obrigatoriedade de informar de forma clara e visível o Preço Máximo ao Consumidor (PMC) nos estabelecimentos, como forma de evitar práticas enganosas e garantir maior segurança ao comprador. Mas a velocidade das discussões ainda não acompanha os riscos e muito menos o lucro do setor.
As grandes redes tomam tudo
O grande varejo farmacêutico movimentou R$ 103,14 bilhões no ano passado, cifras que representaram um crescimento de 14,2% em comparação a 2023.
Um levantamento feito pelo Sebrae, a partir de dados da Receita Federal, apontou que atualmente no país há 122 mil farmácias. E, apesar de mais de 80% delas serem micro e pequenas empresas, são as grandes redes que conseguem capitanear a maior parte do faturamento envolvido no meio. Essa concentração se divide em três grandes grupos – Grupo RD (Raia e Drogasil), Grupo Pague Menos (Pague Menos e Extrafarma) e o Grupo DPSP (Pacheco e São Paulo) – e tem tudo a ver com os fantasiosos descontos ofertados.
Nas pequenas farmácias, onde o CPF não é necessariamente a chave para o paraíso dos descontos, a sobrevivência tem sido penosa. O proprietário de uma drogaria que atua no bairro da Fazenda Grande do Retiro há seis anos resume o desequilíbrio: “é muito difícil, porque as oportunidades que as grandes têm, as pequenas e médias farmácias não têm”. Diante disso, elas recorrem a estratégias de sobrevivência, como investir na venda de medicamentos genéricos (onde conseguem maior desconto do fornecedor) e até mudar de pontos onde há forte presença das redes – o que tem sido cada vez mais comum nas ruas de Salvador.
Troca-se CPF por desconto fantasioso
Na prática, as oportunidades que o proprietário se refere são as possibilidades de desconto para o cliente. As grandes redes compram diretamente da indústria farmacêutica, sem intermediários, por isso já saem com um preço mais vantajoso, por isso as promoções de “compre duas caixas e leve três”. Só que, além disso, eles usam de brechas na legislação para oferecer descontos ainda maiores e alimentar outra parte de seu negócio e lucros.
Tudo começa quando você chega à farmácia, escolhe um produto e ouve aquela mesma pergunta que já virou rotineira: “CPF para receber desconto?”. Muitas vezes, não chega nem a ser pergunta, é uma intimação: “CPF, por favor”. O fornecimento do dado é automático, quase instintivo, afinal quem não quer um desconto tão expressivo? Tem medicamento que de R$ 422 passa para R$ 166. A pergunta parece inofensiva e o benefício irresistível, mas é, na verdade, a chave de entrada para um modelo de negócio que pouco tem a ver com saúde e muito com lucro.
Isca comercial
Para quem já acompanha o caso do “fantasioso desconto do CPF”, a explicação não é novidade. Mas se você chegou agora, acompanhe a aula:
A condição de fornecimento do CPF para expressivos descontos nas grandes redes é nada mais do que isca para montar um perfil detalhado de cada consumidor e comercializar esses mesmos dados para outras empresas usarem e acessarem como bem entenderem – na maioria das vezes, como grupos de audiência para enviar anúncios e propagandas.
Provavelmente, no seu perfil montado a partir de suas comprar, uma dessas grandes redes deve ter informações sobre você, como seus medicamentos rotineiros, se você se preocupa com a aparência, sua frequência sexual, a idade de seu filho ou se está evitando engravidar. Tudo isso é valioso para empresas que querem divulgar seus produtos.
A RaiaDrogasil, maior rede do país, é um exemplo clássico: tem em seu guarda-chuva de empresas a RD Ads, especialista em marketing, que promete unir empresas a suas audiências e faz isso por meio dos dados coletados em seus balcões. O próprio CEO da RD Ads já reconheceu, em entrevista a um podcast, que se fosse nos Estados Unidos, o dono que pedisse CPF ao cliente sairia preso da farmácia. Porque lá, há uma série de normas rígidas no tratamento de dados.
Tirando vantagem da distorção legal
O abismo entre o preço real e o suposto desconto é explicado não só a partir do lucro arrecadado pela negociação com os dados do cliente, mas também pelo chamado Preço Máximo ao Consumidor (PMC). Segundo o Idec (Instituto de Defesa dos Consumidores), a diferença entre o valor final com “desconto” e o teto oficial de preços estabelecido pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) pode chegar a quase oito vezes. Isso acontece porque o PMC funciona como um limite oficial de preços de cada remédio, mas é muito acima do valor de produção do medicamento e também do valor real de comercialização.
Assim, a farmácia pode jogar o preço lá em cima, ainda sem atingir o PMC, e aplicar o desconto após entrega dos dados, se aproximando um pouco mais do valor real do produto. Ou seja, o preço justo fantasiado de desconto irrecusável.
Quando o CPF vira alvo comercial
Professor da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia, Genário Oliveira, lembra que não há hoje nenhuma regulamentação que proíba o estabelecimento de solicitar esses dados para fins de cadastro. Por outro lado, o Procon (Programa de Proteção e Defesa do Consumidor da Bahia) pontua que “nenhum consumidor é obrigado a fornecer seus dados pessoais como condição para acessar descontos ou promoções”.
Fonte: Metro1
