Dormir menos ou ter pior qualidade do sono reflete na saúde em geral, com quadros que vão de irritação e instabilidade emocional até queda na imunidade e maior risco de diabetes.
Tomar um banho morno, escovar os dentes, apagar as luzes e deitar na cama. Esse roteiro parece comum, mas pode ser o prenúncio de uma noite que se estende até a madrugada — de olhos abertos. Com o estresse e a ansiedade aflorados durante a pandemia de coronavírus, dificuldades para dormir, sono fragmentado e até insônia passaram a ser mais frequentes.
Dormir menos ou ter pior qualidade do sono reflete na saúde em geral, com quadros que vão de irritação e instabilidade emocional até queda na imunidade e maior risco de diabetes.
Asmática e com apneia do sono, a vendedora autônoma de cosméticos Angelina Dourado, de 55 anos, tem passado por dificuldades financeiras diante da falta de clientes. A moradora de Ceilândia, que fica a 30 quilômetros de Brasília, conta que passou por uma experiência “terrível” quando teve Covid-19 no fim de 2020 e o quadro de saúde se agravou. Ela deita às 22h30, porém, quando dá 1h da madrugada, já está acordada.
“Daí, então, vou ler, leio até cansar, mas o sono não vem. Às 5h, levanto. Não tenho tratado porque o meu custo de vida não dá para fazer tratamento e o SUS não ajuda a gente em nada”, disse Angelina, reclamando também da falta de concentração devido ao problema.
O perfil dela se enquadra nos traçados em estudo da pesquisadora em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Margareth Guimarães Lima, que estuda o sono durante a pandemia. Entre os perfis mais suscetíveis, estão os de mulheres, jovens, pessoas de baixa renda, sedentárias e que tiveram aumento do trabalho doméstico e do uso de telas durante o período.
“Vimos que 48% das pessoas já tinham problemas de sono e ele piorou e 43,5% passaram a ter. Então, a incidência da piora do sono foi em torno de 45%”, diz, sobre o resultado de um dos estudos de que participou.
Segundo a cientista, existe uma associação muito forte entre o sono e os problemas emocionais: pessoas que se enquadram nessa categoria têm cinco vezes mais chances de ter sono de baixa qualidade. Noutro estudo, publicado em Cadernos de Saúde Pública, foca nas relações entre classe social, econômica e sono:
“O sono piorou naqueles que tinham pior renda antes da pandemia. A piora do sono foi 34% maior nos que eram mais pobres em relação aos mais ricos. Vimos, inclusive, uma associação muito forte entre sono e perda de renda e também entre os que perderam emprego ou ficaram sem trabalho”, completa Lima.
Outro caso é o da Eduarda Rodrigues, de 20 anos, que começou a ter ansiedade e perder o sono após ter Covid-19 no ano passado. Hoje, avalia que o isolamento social e as preocupações econômicas foram as principais causas do distúrbio.
“Após pegar a doença e com a morte de familiares, passei a ter só pensamentos negativos. Nada estava bom, não saia de casa, dormia tarde e ficava acordando várias vezes à noite. Passei também a ficar mais agitada e, neste turbilhão todo, ainda perdi meu emprego”, desabafou.
Com o início de uma nova rotina devido à flexibilização da pandemia, Eduarda conseguiu novamente se inserir no mercado de trabalho. O sono deu uma melhorada, mas ainda não é o mesmo de antes. Ela tem indicação para fazer a terapia cognitiva comportamental, no entanto ainda não sabe quando vai começar.
Segundo o neurologista Raimundo Nonato Delgado Rodrigues, estudos apontam que existe a possibilidade de o vírus SARS-CoV-2 ter uma ação direta no sistema nervoso central e causar problemas de sono. Para o especialista em transtorno do sono, isso pode ocorrer não só imediatamente após contrair a doença, mas até seis meses depois. Faz parte do que chamam de Síndrome da Covid longa.
“Mesmo escapando da parte pulmonar que é a mais aguda, que é mais mortal. Existe um quadro chamado de “brain fog”, que quer dizer nevoeiro do cérebro, em que a pessoa tem fadiga, dificuldade de concentração, dificuldade de memória e alterações de sono que fazem parte dessa Covid de longa duração”, explica Rodrigues.
A privação de sono provoca alterações no sistema imune, sobretudo em pacientes com Covid-19, o que prejudica o combate à doença. Segundo o médico, esse é um ponto que ainda está sendo estudado e são poucos os ambulatórios especializados em pós-covid no país:
“Nós não sabemos qual a real abrangência desses problemas na população. Nós podemos ser surpreendidos por surgimento de problemas na esfera neuropsiquiátrica que a gente não esperava.”
Há, também, quem tem teve uma melhora no sono durante a pandemia. Um outro aspecto apontado por alguns estudos é que 6% das pessoas tiveram uma melhora no sono. São aqueles que têm um quadro chamado de atraso de fase de sono, que dormem mais tarde e acordam mais tarde que o normal. Com o trabalho online, puderam de uma certa maneira adaptar os horários de trabalho aos seus horários naturais, melhorando a produtividade e a saúde geral também
Esse, no entanto, não foi o caso do bacharel em filosofia e estudante de direito Gustavo de Melo Muniz, de 26 anos. O jovem relembra que dormia entre as 23h e a 0h antes da pandemia e que, por vezes, acordava durante a madrugada. Tudo mudou a partir de abril do ano passado. Com o isolamento social e a transformação das aulas presenciais em remotas, o ciclo de sono desregulou, o que refletiu em outras áreas da vida.
“Durante a pandemia, comecei a dormir só depois das 2h. Já tentei dormir mais cedo, lá pela meia-noite como era antes, mas deito e fico rolando na cama, sem conseguir dormir. Fico nesse processo de tentar dormir durante umas duas horas. Também comecei a acordar todos os dias no meio da madrugada”, conta o morador de Brasília.
Para Muniz, a ansiedade é preponderante nessa questão: “Hoje, mesmo com a vacinação e podendo sair com mais liberdade, mesmo tomando os cuidados como uso de máscara, álcool em gel e distanciamento, sinto que a ansiedade não passou, pelo menos não a um ponto em que eu sinta isso no sono”.
Nessa esteira, a coordenadora do Laboratório do Sono (Labsono) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Liliane Teixeira, salienta que o retorno à rotina de atividades presenciais pode ajudar aqueles que passaram por dificuldades durante o distanciamento social.
“A volta ao trabalho trará as pistas temporais de volta, o que é um fator positivo. E, em alguns dias, grande parte da população estará sincronizada a rotina diária. Nos primeiros dias, o cansaço físico e mental poderá prejudicar o sono, mas ao longo dos dias tenderá a reduzir. Caso seja possível, procure se expor a luz natural durante o dia, faça cochilos de no máximo 30 minutos, durante o trabalho/escola para reduzir a sonolência diurna excessiva, e evite ficar exposto às telas à noite”, explica a pesquisadora.
Em trabalho do grupo de pesquisa “Cronobiologia aplicada à saúde coletiva”, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Liliane Teixeira alerta que a privação, a redução e a fragmentação do sono prejudicam não só a saúde física, mas mental do indivíduo. Nessa esteira, os impactos negativos resvalam em áreas profissionais, educacionais, familiares e sociais da pessoa, com possíveis alterações no humor, na memória e no controle do peso.
No trabalho, traça estratégias que podem ajudar a regular o sono. Entre elas, estão deitar e levantar nos mesmos horários todos os dias, evitar cochilos ao longo do dia, criar uma rotina de sono — como, por exemplo, tomar banho morno, chá quente, escovar os dentes e meditar antes de dormir — e anotar pensamentos num caderno para diminuir ansiedade e estresse.
(Folha de Pernambuco).