Pernambuco é referência no Norte e Nordeste no trabalho com a ECMO

Por Ricardo Banana
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Após a divulgação de que o ator Paulo Gustavo foi submetido à ECMO (sigla em inglês para oxigenação por membrana extracorpórea), usada em várias partes do mundo para ajudar na recuperação de pacientes acometidos pelo novo coronavírus, a terapia ganhou repercussão pública e despertou curiosidade.

A terapia é capaz de substituir as funções do coração ou do pulmão de forma artificial e, embora seja de grande valia na batalha contra a Covid-19, não deve ser encarada como uma tábua de salvação.

No caso dos pacientes com a Covid-19 que apresentam severo comprometimento respiratório, a ECMO permite que os pulmões descansem enquanto um circuito faz a respectiva função.

O sangue é retirado do corpo, oxigenado em uma máquina através de uma membrana artificial, que também retira o CO2, e devolvido ao paciente.

Embora maciçamente comentada agora, a ECMO é uma terapia que já vem sendo usada em outros países há algumas décadas. Em Pernambuco, há dois pólos de referência na utilização da tecnologia, o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip) e o Real Hospital Português (RHP).

Ambos os hospitais, localizados no Recife, já faziam uso da tecnologia antes da pandemia e possuem profissionais com registro de capacitação pela Organização de Suporte de Vida Extracorpóreo (ELSO), sendo referências nas regiões Norte e Nordeste não só no atendimento, mas na promoção de cursos de capacitação.

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“Em 2011, houve uma capacitação na Alemanha para conhecer essa tecnologia. Tem 10 anos que trouxemos para o Recife, com momentos de mais e menos uso”, diz o médico cirurgião cardíaco do Imip Fernando Figueira, contando que, antes da pandemia, a ECMO era mais utilizada em pacientes com cardiopatias.

“A gente usa quando o coração está entrando em falência, para que o paciente resista até chegar órgão para o transplante.”

No RHP, a tecnologia foi utilizada pela primeira vez em março de 2018 e, desde então, auxilia na recuperação de pacientes graves com choque circulatório ou insuficiência respiratória.

Segundo a médica cardiologista Verônica Monteiro, que é especialista em ECMO e coordena as UTIs para a Covid-19 do RHP,  a terapia já foi aplicada em pacientes com outros vírus que também podem causar Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) assim como o Sars-CoV-2, a exemplo do vírus H1N1.

“A gente já sabia da importância da ECMO, mas nunca tinha tido um uso tão difundido como acontece agora porque não tinha tantos candidatos a usar”, diz.

Covid-19
“Descoberta” por grande parte da população recentemente, a ECMO começou a ser aplicada em pacientes com a Covid-19 no Brasil entre abril e maio do ano passado.

Países como Estados Unidos e Japão e nações da Europa, sobretudo a Itália, maior utilizador de ECMO do mundo, já vinham reportando o uso em casos graves de infecção pelo coronavírus e sinalizado uma esperança maior de recuperação.

Equipe médica administra paciente em ECMO em hospital de Paris, na FrançaTerapia é muito utilizada em outros países, sobretudo nos EUA e na Europa. Foto: Anne Christine Poujoulat/AFP 

“Na primeira onda, trabalhamos com muita prudência para não indicar de forma maciça, pois seria um desvirtuamento de recursos humanos e financeiros para algo que não sabíamos os resultados. No final da primeira onda, surgiu a indicação, os hospitais tinham mais estrutura e começaram a sair os primeiros números”, recorda Fernando Figueira.

Ele conta que o primeiro paciente com a Covid-19 colocado em oxigenação por membrana extracorpórea no Imip foi transferido do Hospital Provisório Recife II, instalado pela Prefeitura do Recife no bairro dos Coelhos.

No RHP, a primeira indicação de paciente Covid-19 para ECMO aconteceu no dia 6 de maio de 2020. De lá para cá, um total de 27 pessoas foram submetidas à terapia.

Não é para todos
Vale ressaltar, porém, que nem todo paciente grave da Covid-19 terá indicação para o tratamento. Essa, inclusive, é uma preocupação dos profissionais com a repercussão atual.

“É importante entender o papel da ECMO. É uma terapia? É. Mas serve de ponte para ajudar na recuperação, não faz a Covid ir embora. Você tira a função do pulmão e coloca na máquina, mas o pulmão precisa se recuperar”, explica Verônica Monteiro.

“Tem que avaliar bem o paciente que pode voltar, pois há condições que atrapalham, como a própria doença pulmonar prévia, insuficiência renal prévia, tabagismo, doenças cardíacas graves e infecções concomitantes. Tem que estreitar muito porque é uma terapia cara e que só salva 50% dos pacientes”, completa.

“A mortalidade da Covid grave é muito alta. A ECMO tenta dar uma chance maior de recuperação. Trocando em miúdos, de cada dez pacientes graves, se não tiverem acesso à ECMO, nove vão morrer. Se 10 pacientes graves tiverem acesso, cinco vão morrer. Ainda é uma mortalidade alta”, avalia Fernando Figueira.

Saber o momento correto para colocar um paciente de Covid-19 em oxigenação por membrana extracorpórea também faz grande diferença nas chances de recuperação.

“Se depois de conduzir de forma convencional, fez o ventilador e não melhorou, deve iniciar. Não pode esperar ficar muito ruim, à beira da morte”, pontua o médico, explicando que, quanto mais idoso o paciente, menores as chances de sucesso, pela fragilidade.

Equipe multidisciplinar
O doente em oxigenação por membrana extracorpórea tem que estar internado em um leito de UTI, pois é necessário um monitoramento constante.

Um único paciente mobiliza uma equipe multidisciplinar com médicos intensivistas, cardiologistas e cirurgiões, além de técnicos em enfermagem, fisioterapeutas e nutricionistas. Todos devem ter capacitação específica para trabalhar com a terapia.

Essa demanda por profissionais, inclusive, reforça a importância de não ter um sistema de saúde colapsado, para que aumentem as chances de um maior número de pessoas com quadros graves terem oportunidade de tratamento. O tempo que um paciente com Covid-19 pode ficar em ECMO vai depender da evolução do quadro.

“A média é de duas semanas, mas, no momento, a gente tem um paciente (de 19 anos) há mais de 60 dias. Como é uma doença nova, você não sabe o curso clínico, não tem um limite máximo de dias. A gente tem aprendido um bocado e não pode desistir, ainda mais com um paciente jovem”, conta Verônica Monteiro.

Além do adolescente, outros três pacientes internados no RHP também estão fazendo a terapia no momento.

Por mexer com o fluxo sanguíneo fora do corpo, os principais riscos da ECMO são trombose ou hemorragia. Infecções também podem surgir, até mesmo pela exposição em ambiente hospitalar.

Paciente em terapia de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO)Principais riscos da ECMO estão ligados à circulação sanguínea. Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP

SUS não reconhece
Com a disseminação da tecnologia como adjuvante na recuperação de pacientes com quadros graves da Covid-19, outras unidades de saúde ro Recife passaram a também investir nesse recurso, como o Hospital da Unimed, que iniciou o trabalho com a ECMO há cerca de seis meses.

“Como tudo na medicina, percebemos uma mudança de cenário e observamos que se tornou mais frequente o uso na situação da Covid. Viu-se que poderia auxiliar. Tem paciente que perde a função pulmonar praticamente toda”, diz o médico e diretor adjunto do Hospital da Unimed, Henrique Guido.

Segundo ele, até agora, oito pacientes com quadros graves da Covid-19 atendidos na Unimed fizeram uso da oxigenação por membrana extracorpórea, com duas pessoas internadas no momento.

“O paciente tem que estar grave, mas ter condições de suportar a terapia. Em geral, se o paciente tem condições, a gente usa. Em torno de 40% (dos casos atendidos no hospital) conseguiram sair da ECMO”, fala Henrique Guido.

Existe, no entanto, um abismo quanto ao acesso, uma vez que os hospitais que fazem uso desse recurso estão, em sua maioria, no setor privado. A ECMO não é uma terapia reconhecida pelo Sistema Único de Saúde e, por isso, não é ofertada da rede pública.

“Alguns hospitais que são 100% SUS apostaram, pela importância”, pontua Fernando Figueira, citando a situação do Imip, que recebe pacientes transferidos de outras unidades da rede pública.

“(o acesso) Basicamente, tem sido na base do conhecimento, pessoas próximas que pedem indicação. Infelizmente, na maioria dos casos, é muito tarde; a ECMO tem que ser instalada no hospital de origem porque o paciente já é tão grave que não pode sair sem o suporte. Aí, depois é transferido”, completa, contando que já fez transferências de doentes de estados vizinhos, como Alagoas e Paraíba, usando UTI aérea.

O RHP também recebe pacientes de fora do Estado. “Já recebemos pacientes do Amazonas, de Sergipe. Esta semana vinha uma paciente do Acre, uma ECMO particular. O funil (de acesso) não é só da indicação clínica. Às vezes, não dá tempo. Só hoje (segunda-feira, dia 5 de abril), foram duas (indicações), mas tem o transporte, a expertise da equipe. Não adianta implantar e não saber manusear”, diz Verônica Monteiro.

Alto custo
Como não é regulamentada pelo SUS, a terapia de oxigenação por membrana extracorpórea não tem uma tabela de valores. Como a demanda aumentou por conta da pandemia, o custo para utilização da ECMO sofre oscilações significativas.

Os hospitais não possuem equipamentos próprios, são comodatados junto a empresas fornecedoras. Não se paga a máquina em si, mas os insumos para o funcionamento dela, que são descartáveis e incluem a membrana para oxigenação, fluidos, além das cânulas e de um conjunto de tubos.
Cada conjunto atende apenas um paciente por vez. Ele recebe as cânulas e tubos e se mantém em terapia até que haja resposta clínica positiva ou negativa.
“Quando a gente compra o conjunto dos insumos, a empresa fornece o aparelho, que é, basicamente, um console. Se os hospitais pudessem ser equipados com a máquina, poderia baratear os preços. Por vezes, conseguimos ter um descartável (conjunto de insumos) já dentro da casa. Mas, pela demanda hoje, o próprio fornecedor não tem se dado ao luxo de manter um material consignado”, diz Fernando Figueira.
“A gente tenta trabalhar sempre com uma tabela muito enxuta. Na rede pública, um custo de R$ 50 mil a 60 mil por paciente para implementar e manter, independente do tempo. Mas é uma visão empírica, não tem tabela. A gente briga desde 2015 para o SUS reconhecer, regulamentar e ter uma tabela de valores para evitar leilão de preços”, completa.
Trabalhar com um conjunto de materiais “na casa” significa dizer ter uma estrutura de reserva para implantar de imediato em um paciente com indicação para a ECMO.
Segundo Verônica Monteiro, o RHP busca ter sempre esse “estoque” de segurança para emergências eventuais.
“Hoje, temos quatro pacientes em terapia e um equipamento reserva. Se ele entrar em uso, fazemos a solicitação para repor. Alguns planos de saúde cobrem os custos da ECMO; outros, não. O hospital tem bancado e vai brigar com o plano depois”, explica.

Burocracia
A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) é a responsável pela implementação de novas tecnologias no Sistema Único de Saúde. E isso é feito através de etapas.

Em 2015, de acordo com Fernando Figueira, foi dada entrada em uma documentação solicitando a regulamentação da ECMO no Brasil. Foi feita, então, uma avaliação da tecnologia e do custo. “Passamos por todas as fases e a Conitec tinha aprovado”, lembra.

O estágio seguinte foi uma consulta a organizações civis, a exemplo das sociedades de medicina intensiva e de cardiologia, diretamente envolvidas no uso da tecnologia. A ECMO também avançou.

“Quando chegou ao Conselho Federal de Medicina, o relator do processo dentro do CFM, um médico que não tinha nem habilitação técnica sobre o tema, o classificou como experimental. A Conitec ficou de mãos atadas porque o CFM é muito forte”, explica Fernando Figueira.

“Dois anos depois, consegui revogar em uma sessão plenária, e o CFM passou a não considerar mais como experimental. Mas, infelizmente, todo o trâmite que tínhamos percorrido foi por água abaixo. Tivemos que começar tudo de novo e acredito que esse momento que vivemos é extremamente propício”, completa.

Recentemente, uma empresa do interior de São Paulo conseguiu a certificação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para produzir a membrana utilizada na ECMO. Pela a primeira vez, o Brasil poderá ter uma membrana de fabricação nacional.  (Folha-PE)

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