Um dos mais populares ritos do catolicismo rural brasileiro é uma expressão cultural europeia que chegou ao nosso país pelas mãos portuguesas e aqui se misturou com as culturas ameríndia e africana. A Roda de São Gonçalo, que hoje é dançada em Orocó, no sertão pernambucano, por Osmira, Luzia dos Índios, Cizinha, Leni e Lourdes é a mesma que Seu Alfredo do Riacho Seco, do lado baiano do rio, trouxe e encantou um dia a Ilha do Aracapá, lá pelos idos de 1972. Contam, os mais antigos, que foi uma semana inteira de rodas e palmeados ao som de pandeiros, violas e triângulos para pagar promessas e graças alcançadas ao santo português, violeiro, casamenteiro e patrono da fecundidade humana, que inventou uma festa para alegrar e afastar as mulheres da difícil “vida fácil”.
Invariavelmente, as rodas começam com os versos, “Ora vi, orai e viva, ora vi, orai e viva, viva São Gonçalo viva”, ao redor de uma mesa farta e sem dar as costas para o altar. Depois, os dançantes se envolvem em ininterruptos volteios e sapateados em ritmo sincopado, ora em forma de círculos ou de cruzeiro, reverenciando o santo e beijando-lhes os pés, até que se cumpram 12 mudanças para cada promessa alcançada. No Nordeste brasileiro, ocorrem dois tipos de rodas. O São Gonçalo dos Arcos, o mais comum, que é realizado por conta do cumprimento de promessas e onde todos dançam com grandes arcos feitos geralmente de palha de coqueiro, e o São Gonçalo das Almas, que acontece quando alguém morre sem realizar o compromisso com o santo. Geralmente um filho, parente ou pessoa amiga do falecido manda fazer a manifestação coreográfica em nome desta com tudo que tem direito.
Contam também do costume, que as mulheres só dançam a roda se estiverem de saia ou de vestido. E que as casadas, para participar do folguedo, não podem dormir com seus maridos na noite anterior nem no dia da roda. Seu Alfredo do Riacho Seco passou o bastão para Zebinha, que formou um grupo com as dançadeiras Edite de Jové, Miguel Roberto, Inocência do Nascimento e as Marias Raimunda, Eunice, Luiza, Rosa, Ângela de Sá e Rita da Conceição.
Durante todos os meses do ano, a oralidade conta de “boca a boca” como a roda de São Gonçalo evoluiu de geração para geração em Orocó. A tradição passou aos pés dançadeiros à poética das raízes e a crença inabalável de Luzia Marques, Zefa (mãe de Luzia), Antonia Cágado, Ivone, Maria de Clara, Maria do Carmo, Socorro de Zé Clemente, Galega, Girô (Georgina), Joaquina, Felina, Dominga e Zefa de Joãozinho. Tudo para que essa original manifestação profano-religiosa, seus guias, dançadeiras, tocadores e coro, se perpetue na memória coletiva e se mantenha viva como patrimônio cultural e imaterial do povo sertanejo. Assim como o dito popular que nos lembra ser a fé, a força que nunca se apaga.
Carlos Laerte é poeta, jornalista e diretor da Clas Comunicação e Marketing.