Na EBC, a luta pela democratização da mídia

Por Ricardo Banana
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imagemO vergonhoso golpe de caneta que pretende afastar o jornalista Ricardo Melo da presidência da EBC, onde tem um mandato legítimo de quatro anos para cumprir, não deve esconder a questão real por trás do episódio.

Dilma Rousseff fez muito bem ao se manifestar, ontem, dizendo que  “é absurda e lamentável a decisão do governo provisório de violar a lei que criou a EBC. Mais um ataque ao Estado Democrático de Direito”, afirmou.

Além de garantias essenciais na história política de qualquer povo, o que também está em jogo para a maioria dos brasileiros é a sobrevivência de um necessário processo de democratização dos meios de comunicação liderado pelo jornalismo da TV Brasil, hoje a principal e muitas vezes única voz dissonante – fora das redes sociais – no coro dos contentes que ajudou a articular o afastamento temporário de Dilma num esdrúxulo impeachment sem a demonstração de crime de responsabilidade.

A quem ainda duvida da atuação maligna dos meios de comunicação neste difícil momento histórico, recomenda-se a leitura de “Apocalipse do Jornalismo,” de Mario Vitor Santos, disponível na internet. Duas vezes ombudsman da Folha de S. Paulo, onde também ocupou diversos postos dirigentes, Mário Vitor escreve que “a ruptura institucional em via de ser completada no Brasil é resultado direto da degradação do jornalismo posto em prática por quase todos os meios de comunicação no país. Os cuidados éticos foram sacrificados a tal ponto que o jornalismo promove a derrubada de uma presidente até agora considerada honesta. “

Neste universo lamentável, a EBC destacou-se, por abrir uma pequena, quase ínfima, brecha no  monopólio da mídia, como um anão numa floresta de gigantes privados, articulados e uniformizados.

 Num processo acentuado em anos recentes, em especial na crise política atual, a emissora tem exibido  programas de jornalismo que oferecem um contraponto indispensável ao padrão midiático de fim de mundo descrito por Mario Vitor. Este comportamento tem permitido confrontar uma insuportável ditadura do pensamento único, reconhecido até em levantamentos científicos, a começar pelo estudos do Manchetômetro, sediado no Instituto de Pesquisas Sociais e Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Como já é admitido por vozes de espectadores e entidades  que atuam na defesa de uma democracia ampla e plural em nosso país,  empenhados no combate a um decreto que representa um primeiro passo numa sequencia de mudanças nefastas e previsíveis, o jornalismo da EBC tem dado  voz a um ponto de vista político partilhado – mas silenciado – de uma parcela expressiva da população brasileira.

Ao fazer isso, contribuiu  para assegurar um equilíbrio mínimo à arena dos meios de comunicação, cenário decisivo da luta política das sociedades contemporâneas. Ligando-se a uma força social gigantesca mas sem acesso a meios interessados em expressar seu ponto de vista, sua prática cumpriu um papel essencial ao Brasil de nosso tempo. Fez o combate pela democratização da mídia –na vida prática.

 Em função desta atuação, que observadores a serviço do monopolio privado descrevem de forma interesseira  como “aparelhamento” e jornalismo “chapa branca,” não é de estranhar que uma das primeiras aberrações geradas pelo espetáculo que levou ao afastamento de Dilma tenha sido o decreto que determina o afastamento de um diretor que exerce um mandato legal, autônomo em relação aos governos de turno, situação que é uma condição necessária — mas obviamente não suficiente — para um jornalismo digno desse nome.

  Fazendo uma analogia com regras necessárias a todo debate civilizado, essa situação permite o contraditório, estimula o confronto e o questionamento de narrativas e opiniões colocadas em circulação pela mídia reinante. É parte essencial de uma democracia de verdade, na qual todos podem aprender e se enriquecer com a apresentação de argumentos — de um lado e de outro.

  Os estudiosos da comunicação conhecem — na teoria — as condições estruturais que construíram um pensamento único a partir de um conjunto de concessões privadas, que se alimentam de um sistema de monopólio que é condenado pelos capítulos da Constituição de 1988 que regulam o assunto. Estamos falando de propriedades cruzadas, que asseguram o monopólio em todos os níveis.  Da concentração de verbas publicitárias. Das concessões feitas com base em favores  políticos, que asseguram a eternização de oligarquias no plano regional e nacional.

  Força que se reproduz e autoalimenta, por sua própria natureza o monopólio oferece poucas brechas reais para sua contestação. Mesmo um governo progressista, como o condomínio Lula-Dilma, acabou envolvido por ele, em grande parte iludido pela miragem de que seria vantajoso fazer um acordo com um adversário excessivamente poderoso em vez de mobilizar forças disponíveis construir uma alternativa de acordo com os interesses do conjunto da sociedade.

  Mas seria errado e injusto — como se ouve com frequência — acusar Lula-Dilma de nada terem feito para encontrar uma alternativa. Através da EBC, criada no governo Lula, numa luta infernal no Congresso, fez-se uma tentativa, ainda que modesta e muitas vezes incompreendida, erradamente criticada, de democratização da mídia.

 Essa atuação permitiu atrair e fidelizar um público crescente, ainda que a audiência de hoje esteja longe de envolver grandes platéias. Uma vitória importante — e não apenas simbólica — foi obtida, porém.

 No passado, a emissora parecia condenada  a um destino semelhante ao de publicações e personagens dissidentes forçados a lutar pela sobrevivência sob ditaduras especialmente severas. Quase ninguém vê o que se faz e quem enxerga não compreende o que se diz.

 Ao assumir, em anos recentes, em especial no período anterior a maio de 2016, a cobertura da crise política em todos os seus aspectos, expondo com clareza aquilo que estava em jogo do ponto de vista de uma imensa parcela de brasileiros, a TV Brasil cumpriu a obrigação que se espera de uma  TV pública. Deu voz e rosto a quem era submetido a um regime de silêncio compulsório.

 Essa novidade marcante, decisiva, ajuda a entender por que tornou-se alvo de uma das primeiras medidas ilegais,  brutas — e desastradas — do governo temporário.

 Minha experiência em pouco mais de dois anos como apresentador do Espaço Público, programa de entrevistas da EBC que ajudei a conceber ao lado de uma equipe de espírito profissional respeitável,   confirma aquilo que já tinha aprendido em mais 40 anos de jornalismo.

  Por mais que se possa aceitar e reconhecer  o jornalismo como atividade de empresas privadas, escola da maioria dos profissionais brasileiros num país onde este é o setor amplamente dominante, cabe admitir que a TV pública cumpre um papel único na circulação de informações confiáveis e na construção de um ambiente político democrático.

 Isso ocorre, em parte, porque sua atividade não está voltada para a produção de lucros privados — como  vender biscoitos ou oferecer aplicações rentáveis no mercado financeiro — nem submetida aos movimentos de monopólio econômico e político em vigor num país onde a palavra mídia passou a designar uma forma espúria e dolorosamente real de partido político.

  Ocupando um lugar diverso, uma TV pública se  justifica pela atenção relevante a questões essenciais, que contribuem para o fortalecimento das instituições democráticas, como a formação da cidadania e a criação de um ambiente essencialmente plural e enriquecedor, na cultura e na política. Sem fazer do mercado seu ponto de partida e de chegada, pode cultivar um interesse genuíno pelo destino do país como um conjunto, e priorizar grandes maiorias às voltas com carências que todos conhecem.

 A condição, para isso, obviamente, é um jornalismo feito com autonomia também perante os governos. Estes têm uma tendência — compreensível — de tentar transformar todo equipamento de comunicação numa agência de propaganda, o que reforça a necessidade de que os mandatos de governo e da direção da EBC não sejam coincidentes, evitando uma relação direta de dependência.

 (A mesma tendência se observa no jornalismo produzido por monopólios que atuam como aparelhos ideológicos privados. Aqui a dependência de jornalista e do jornalismo em relação ao patrão-acionista é ainda mais acentuada e direta, sem intermediação nem regras objetivas, ainda que em tempos de hipocrisia liberal seja falta de educação falar sobre isso).

A história da curta existência de oito anos da TV Brasil mostra derrotas, empates e vitórias nesse terreno. Sua vida interna é semelhante a qualquer fatia do Estado brasileiro, possuindo conflitos que espelham a vida real numa sociedade heterogênea e muito desigual. Ainda que seja forçoso reconhecer que muitos erros foram cometidos e que há muito a ser feito, o  saldo geral é indiscutivelmente positivo.

No Brasil de hoje, este jornalismo deve ser reconhecido como uma alternativa real a uma parcela imensa de brasileiros que nunca foram atendidos em suas garantias  essenciais — a começar pelo direito de se informar em liberdade.

Este é o debate.   (247)

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